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                                           Canção da Despedida

Fiquei por quase uma hora espionando atrás do muro, pois sabia que seus pais iriam sair de carro pra  jogar bingo no Juventus.Desci a viela correndo com o coração na boca.Deveria estar sozinho.Sua casa parecia um breu, mas com certeza estava lá dentro apodrecido em algum lugar.Disparei a campainha.Nada.Empurrei o portão da garagem e ele estava sentado em frente a TV desligada.Meti a mão no vitrô da sala.
- Fábio, abre aqui...por favor...Sou eu, a Silmara.
Ele nem se mexeu.Comecei a gritar o seu nome:
- Abre pra mim.Pelo amor de Deus.Fala comigo.
Ele tapou os ouvidos com as duas mãos, mudo.
Olhou-me como uma criança assustada.
- Deixa eu te ajudar...Eu só tenho você! - escorreguei o corpo na parede.-
Eu sacudia as grades numa dor sem fim.
- Vai embora.- murmurou.
- Por que? Me fala...
- Eu tô doente.Vai embora.
Tapou os olhos, virando o rosto para a outra escuridão.
Subi a viela correndo até a padaria.Estava descabelada, descalça, desnuda...Comprei algumas fichas telefônicas e o orelhão engoliu quase todas.Vai, atendeeeee!Após muitas tentativas ele me atendeu.Reconheci pela respiração ofegante.
- Não desliga.Você vai me ouvir.Por favor, um  dia você disse que me amava, lembra? Talvez fosse até brincadeira sua, mas eu te amo!  Eu te amo e isto é sério.Hoje você me mandou embora da sua casa, da sua vida.Se amanhã precisar de mim...eu tô aqui.
Não consegui falar mais nada e ele desligou, me deixando no vácuo. Naquela noite eu fiz sentinela no portão da sua casa, completamente sem chão.
- Minha mãe me abandonou... Agora ele também!– ficava repetindo isso para tentar me convencer que estava só.
Da janela que tinha no fundo do quintal de uma vizinha eu conseguia enxergar o seu quarto, sua cama e sua vida. Todos os dias á tardezinha pedia para que me deixasse ficar ali, quieta, observando tudo.
Debruçava no parapeito com muita dificuldade, ansiosa para lhe ver.Quando ele percebia que estava sendo observado cobria a cabeça com o cobertor xadrez.O que estaria acontecendo com ele? Com nós? Uma vez levantou-se da cama e foi até a janela me olhando com serenidade.Nem uma palavra.Nem um adeus! Estávamos nos perdendo.
Resolvi assumir aquela paixão avassaladora porque ela estava estampada na minha cara, e eu não tinha como negar. Criei coragem e fui lhe fazer uma visita. Subi cada degrau daquela escadaria de mármore, entrando no seu sarcófago. Ele mudava os móveis de lugar a todo instante. Perdi-me em seus olhos mórbidos. Não sabia mais o meu nome: “Silvana? Maria? Leonor?
- Você me desculpa, eu não te conheço, mas fica aqui comigo? Você é bonita! Fala inglês?
Não acreditei no que estava ouvindo e segurei a sua mão: “Um dia você me prometeu que se casaria comigo. Já se passaram anos, e hoje eu estou me casando com você. Juro que estarei contigo em todos os momentos de sua vida; na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença!”.
Um filme foi passando diante das minhas lembranças, aquelas das quais ele nem se lembrava mais: o nosso primeiro beijo, as brincadeiras de queima, o sorvete de flocos, os encontros escondidos atrás das árvores, os diários secretos, os apelidos monstruosos, as palhaçadas no portão; o nosso sonho em sermos apenas felizes! Estava tocando uma música de  Roberto Carlos, a qual virou o nosso hino:

“Detalhes tão pequenos de nós dois
São coisas muito grandes pra esquecer
E a toda hora vão estar presentes
Você vai ver’.


— Quem é você mesmo? — perguntou.
— Sou aquela que lhe tem amor!
Estava dentro da sua casa, do seu mundo; aquele que tanto almejei. E diante de tantos quadros na parede, ele não se enquadrava em nenhum. Eu passei a visitá-lo todas as tardes, sendo que muitas vezes ele me deixava sozinha no quarto, fugindo pela janela.
— Não vai embora. Por favor, eu só quero conversar com você!
— Eu volto logo. Fica aí, Helena. — dizia, se esquivando de mim.
Foi ficando cada vez mais estranho, esquisito e totalmente alucinado. Já não era mais nosso e nem de si mesmo. Andava pelas ruas com um agasalho surrado, catando palitos de sorvete e tampinhas de refrigerante. Virou um andarilho e foi encontrado em lugares distantes dali, como na estrada de Santos e em Aparecida do Norte, após dias de buscas intensivas e extremamente desgastantes. Desmontava tudo o que via na frente e tinha um prazer especial por chuveiros, arrancando os pinos até a “raiz”. E pela privada, então? Era paixão antiga. Jogava tudo lá dentro como se fosse um liquidificador moderno: potinho de Yakult, caixinha de massa de tomate, rolo de linha, sapato velho... Fazia isso discretamente, no maior ritual, como se tivesse sido designado pela Nasa para uma missão sigilosa.
A minha dor era tanta, que eu mordia os lábios até formarem feridas.
Queria me destruir também, porque uma parte de mim estava indo embora, junto com ele. Como eu sofri, meu Deus! Quando nos encontrávamos na rua e ele me ignorava, a minha vontade era de engoli-lo para dentro de mim, para que não fugisse nunca mais.   
Sua mãe fazia novenas todas ás manhãs na sua casa, e nos reuníamos com terços nas mãos. Tenho certeza que para a sua família também foi uma grande perda, e ninguém conseguia compreender o que estava acontecendo com ele. Pensamos em tudo, desde droga até macumba. Naquela época, não se ouvia falar em depressão, estresse ou transtorno bipolar. O louco era louco e sempre seria. As pessoas tiravam um barato e pronto. Era a alegria do povo; o bobo da corte. Para nós, foi uma Odisséia dolorosa transpor os limites do próprio preconceito para aceitar que alguém que amávamos, de ontem para cá, havia pirado.
Foi levado a curandeiros e a especialistas famosos; fizeram de tudo para que voltasse a ser o moço mais querido da Mooca...Mas ninguém nos dava esperança. O tempo foi passando rápido, e ele foi sendo engolido por sua própria loucura. Estava agressivo e parecia um bicho-do-mato. Então, sua família resolveu que o melhor seria interná-lo numa clínica psiquiátrica.
Procurei o seu pai para dizer que não acreditava no interesse de qualquer
clínica em reintegrar pessoas na sociedade. Elas não tinham nada para oferecer, além de calmantes, remédios e chiqueirinho. Mas quem “era eu” para acreditar ou não num sistema falido, que mais parecia um depósito de loucos varridos, meras carcaças humanas vagando sem destino, sem futuro e sem piedade? Era apenas uma mocinha pobretona e brega, que  não entendia nada de nada.
Já no outro dia, cedo, acordei com o barulho da vizinhança, que se aglomerava no seu portão. Ainda de pijama e toda descabelada, pulei o muro, procurando pelas últimas notícias. O que estaria acontecendo? “Ele vai ser internado numa clínica muito chique, e o camburão já está chegando...” — me contaram. Era apenas um bom moço que tinha enlouquecido. “Vai ser melhor assim. Ficou louco, coitado!”. Escancarei o seu portão com os pés e corri pelos cômodos da sua casa, procurando com os olhos.Queria que fugisse comigo para bem longe dali.
Subi os degraus, aflita, e o encontrei enrolado num cobertor xadrez, em pleno verão, com os olhos pregados no teto, rindo sozinho.
— Ninguém veio me ver hoje... Nunca ninguém vem me ver, Sandra! —  sorriu.
— Fábio, vem comigo. Eles vão te levar para um hospício...
Nisso, abracei-o com toda a minha força. Comecei a gritar: “Vamos embora daqui! Eu te escondo. Rápido!”. Ele nem reagiu, e continuou sorrindo para a parede. Não houve tempo. Um policial fardado e com um cassetete na mão entrou no quarto e tentou segurá-lo. Fábio empurrou o policial e pulou da janela do sobrado para a lavanderia. Todos gritavam ao mesmo tempo. Corria, sem rumo, desesperado. Olhava para um e para outro, buscando
algum tipo de ajuda. As pessoas amigas já não eram tão amigas assim, virando as costas para não serem reconhecidas no meio do povo. E então, ele se entregou. Tropeçou no próprio chinelo e caiu morto de cansaço, suando de medo como um bichinho indefeso e assustado. Conseguiram capturá-lo na nossa rua encantada, diante de todos: do tio do sorvete, dos funcionários da fábrica, da sua mãe, das italianas da Mooca...
Nossos olhos se encontraram num minuto de desespero, e as minhas
lágrimas eram jorradas infinitamente como uma tempestade de verão, daquelas que chegam para lavar a alma do mundo. Ele sorriu, e murmurou:
“Não chora! Tá tudo bem”. Foi abraçado por uma camisa-de-força, e rapidamente ligaram a sirene da viatura, enquanto eu me derretia na calçada, em prantos. Antes de o veículo partir, ele ainda teve tempo de dizer: “Amor, não chora que a hora é de deixar. O amor de agora, pra sempre há de ficar. O rei mau coroado não queria o amor em seu reinado, pois sabia que não ia ser amado. Amor, não chora. Eu volto um dia”. — “Canção da Despedida” — Composição de Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré.
Nisso o meu pai, numa atitude impensada e infeliz, deu-me um tapa no rosto, para mostrar que era um homem de represálias:
— Chorando por um louco? — gritou.
— Não. Eu choro por vocês, que não sabem o que é um verdadeiro amor!
Eu demorei para compreender o que se passava na cabeça do meu pai. Fiquei um bom tempo sem conversar com ele por causa daquele tapa.

 

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