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Eu te amo, mas não te quero

Não sabia qualificar o que estava acontecendo conosco. A vizinhança dizia que ele usava drogas; uma tal de balinha.Sei lá.Nunca me disse nada e acho que nunca saberei de verdade. Peguei um papel para expressar toda a imoralidade de amá-lo tanto assim.Tranquei-me dentro de um retrato antigo e me diluí em inspirações.Comecei a escrever cartas anônimas, pedindo ao carteiro que entregasse na sua casa com a condição de guardar segredo.No inicio ele ignorava, mas depois já sorria perguntando se tinha mais.

“ As luzes se acendem num suspiro de criança e sei que você está pronto para recomeçar.Serei sua água, seu ar e suas mãos.Serei um nada também, mas um nada tão importante que você nunca esquecerá.Por isso recomece comigo.Aproveite a vida nova.Ela é sua e eu também!
Sou tua companheira, tua sombra e tua imaginação.Estarei contigo em qualquer época e em qualquer mundo.Bendito fosse o teu nome, Fábio Retti.Meu infinito amor!”


Depois trepava no muro para observar o carteiro colocando o envelope na caixinha.Ás vezes conseguia ouvir sua voz rouca perguntar  com timidez : - Carta pra mim?
Aí eu não conseguia ver mais nada e ficava imaginando a batida ofegante do seu coração, o desembrulhar do papel, a emoção de ler cada  palavra...Quem seria a dona daquela paixão avassaladora? Carmem, Maria, Ivonete? Essa incerteza me deixava misteriosa e poderosa. Nossa, que tesão!  Aquele instante passou a ser o único momento que nos unia num sentimento de enlace matrimonial. E quando nos encontrávamos nesses desencontros angustiantes, já sorria pra mim e algo mágico começava a recomeçar...Até que um dia após lhe enviar a bendita carta anônima, ele também trepou no muro e perguntou:
- Foi você?
Deixei um sorriso escapar dos lábios secos e famintos.Ele repetiu a pergunta e nos aproximamos num abraço mais forte que a própria dor!
Com o passar do tempo nos reencontramos e a paz fluiu dentro de nós.De repente senti sua mão na minha e quase morri de felicidade.Era a mesma mão que havia explorado o meu corpo num carinho profundo e arrancando aos poucos a minha ingenuidade feminina.
- Tenho saudades da gente.- murmurou.
Não era mais responsável por seus atos.Estava dopado por mil remédios minúculos.Nem sabia o que falava, mas eu comecei a acreditar.
Eu estava saindo do meu portão toda serelepe quando o vi beijando uma outra na boca.Que outra? Uma sirigaita.Uma vulgar.Uma Godizilla Assassina...Sei lá o quê! Soltei um grito de raiva, sem querer, espontâneo, ridículo.Corri pra dentro de casa e ele foi atrás.Bati a porta na sua cara e ele pulou a janela do quarto grudando o meu corpo suado de horror.
- Você é minha amiga. Nada mais! Existe um rombo no nosso caminho.Você é uma menina linda e eu um  idiota...
- Você só pode ser um idiota  pra fazer isso comigo.
- Eu te amo, mas não te quero.
Nisso o empurrei cuspindo no seu rosto.

- Para as cucuias  o seu querer .
Chega de carta anônima.Pro inferno  tanta bobeira desperdiçada em frases que ele não merecia.Estava namorando com a outra pelos becos da cidade.Louco fajuto! Traçava ela atrás das mamonas e enquanto eu continuava intacta por dentro e por fora.
De madrugada apareceu na janela do meu quarto e cochichou o meu nome para que meus pais não ouvissem. Grudamos o rosto na grade e lhe lambi a boca, em silêncio.
- Silmara, você se lembra da gente?
- Só se esquece aquilo que nunca existiu.
Suspirei, puxando a cortina.

“O homem não morre quando deixa de viver, mas quando deixa de amar”.


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De repente abraçou-me na frente dos funcionários da fábrica. Dei-lhe um murro na boca e ele grudou as unhas no meu braço.
- Vai ficar com ela. Devora aquela mulherzinha barata! Vai, porque o que ela te dá eu jamais nem sequer te venderei.
As pessoas se aglomeraram tentando nos separar.Rodávamos de lá pra cá gritando ao mesmo tempo.
- Seu louco fingido. Fumeta do caramba! Acabou com a minha vida.
- Fica quieta...Me escuta...Eu amo você.- suspirava- Mas eu sou um condenado, Silmara.Eu não quero que você sofra; que vire uma viúva de marido vivo...Pelo amor de Deus.Olha pra mim!
Nos olhamos e  choramos ; nos olhamos e nos beijamos.Nos empurramos e nos violamos! Nos abandonamos! E nos achamos.Alma da minha alma.Paz do meu sorriso!

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Comecei a acariciar o seu cabelo como se fosse minha própria cria.Deitou a cabeça no meu colo aconchegante e víamos as estrelas no céu.Era madrugada e eu havia pulado a janela de casa para amanhecer com ele na grama do clube que tinha no final da nossa rua.
- Lembra de como a gente se gostava?- sorriu.
- Até que você me abandonou...Agora ta com outra.
- Vou me casar com ela.Ter filhos loucos e pirar de vez.
- Espero que sim.Espero, de coração, que você pire até babar!
Nisso nossas risadas foram se desfazendo num tom agressivo.
- Você também vai conhecer um cara bacana.Vai se casar e ser feliz.
- Não acredito que você me arrancou da cama para me falar tanta baboseira! É lógico que eu vou conhecer um cara legal.Não é possível que só conheça lixo igual a você.Quero que se dane!
Virei ás costas. Pulei o muro novamente e desci a rua no maior pinote!
Eu te juro amigo, que você era o inimigo mais amado do mundo!

                      

 

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