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                                        O Cortiço   sinistro!

 



Num final de semana qualquer, fizemos nossa singela mudança e tia Etelvina deu a maior força nos presenteando com alguns moveis usados. O meu pai alugou uma casinha no bairro da Água Rasa, com a dica da maravilhosa tia Maria do Carmo, mãe da elegantérrima Rita de Cássia. Ele não se importava em varar as noites trabalhando, apenas para conseguir pagar aquele aluguel salgado, mas valioso. Voava pelas ruas da cidade, na capa do “Batman”, sempre atento para não se atrasar, com sua maleta de couro marrom, que continha somente um casaco de lã para a madrugada fria, uma marmita bem areada, uma laranja lima para a sobremesa e o crachá com uma foto em preto e branco dos anos 60.
Quando chegamos de mudança ao endereço anotado numa folha de caderno, quase caí dura de raiva. Era um cortiço, descaradamente ridículo, com suas portinholas pintadas de sobras de cores bizarras. A dona da casa era uma velha ranzinza de cabelos cor-de-fogo. Ela não gostava de cachorros, de crianças e de parentes, mas mesmo assim minhas tias faziam questão de nos visitar aos domingos, atravessando elegantemente o corredor da morte, com suas meias de seda e sandálias de salto marrom-terra. Passavam o dia todo com a gente, amontoadas em um único cômodo, beliscando a maionese e o cuscuz que minha mãe fazia questão em servir no capricho enquanto faziam planos para o futuro.  Naquela época, eu daria uma unha  para ter uma sala de verdade, mas isso era um sonho dourado e totalmente impossível. Durante anos imaginei ter um lindo chuveiro elétrico a minha disposição, para ficar horas torrando as pelancas no vapor. Só que para tomar um banho gostoso precisávamos ferver a água no caneco. Eu me trincava de vergonha quando alguém chegava de surpresa, enquanto eu me ensaboava toda dentro de uma bacia de alumínio.
Sentia uma raiva danada daquele cortiço brega e não queria que ninguém no mundo soubesse do meu “triste e infeliz” paradeiro. Por isso, dizia para as colegas de escola que não poderia levá-las até a minha casa porque tinha uma mãe estranha, maligna e totalmente enlouquecida. Em época de lua cheia, então, a coitada pirava de vez, arrancando todos os fiapos de cabelo! As mais intrometidas não faziam charme e queriam conhecer a todo custo o meu quarto e até jogar vídeo game na minha sala... Sala, sala, sala!
Ter ou não ter. Eis a questão! Uma vez a professora me encarou por cima dos óculos, decretando com autoridade que o trabalho de Educação Artística seria feito na minha casa.
Quase enfartei. Como assim!? E agora? Suas palavras caíram como um
saco de cimento na minha cabeça, e desabei, num grito de dor, inventando:
“Não posso. Vovó acabou de falecer. A vida realmente é uma caixinha de
surpresas!” Fui amparada com carinho pelos amiguinhos solidários. E
assim acostumei a matar a “minha avó”, a “tia do interior”, o primo do tio da tia e o cachorro de estimação sempre que alguém tentava invadir o meu mundo triste e depenado.
Eu não tinha muita diversão naquele cortiço fubenga, então fiz amizade com a vizinhança e em pouco tempo era a chacrete do pedaço.Para matar o tempo comecei a ensinar para  a molecada as primeiras letras do alfabeto.Minha mãe arrumou um serviço no bairro da Mooca e lá do meu portão eu conseguia enxergar o telhado da casa onde tinha a oficina de costura.Ficava praticamente o dia inteiro sozinha e para não sentir medo conversava com minhas bonecas.No começo eu era a mamãe delas, mas conforme ia crescendo olhava o meu boneco de borracha com outros olhos...Olhos de paixão! Ele tinha uma boca enorme e eu enfiava a língua lá dentro num beijo sensual. O seu nome era Roberto e ajeitava o seu corpinho de plástico duro feito pedra ao lado do travesseiro. Tivemos um caso secreto por muito tempo e só não casamos porque eu já estava de olho nos moleques da escola.
Engraçado como eu era a cara do meu pai; moreninha anêmica, beiçuda, bunda de mexerica e perna de pernilongo. Feia que dói! Ainda usava dois grampos enferrujados na franjinha. Coisa de pobre! Era brava do tipo bicho do mato. Tinha pavor de homem. Para me colocar medo, minha mãe dizia que todo homem tinha um treco no meio das pernas muito perigoso.Era um pedaço de pau peludo que só de encostar fazia nenê.Imagina só a palra que eu tinha de um bicho daqueles me pegar? Ainda mais eu que era só uma haste flexível que se movia ao sabor do vento! Eu só paquerava os meninos “pelo rabo do olho”. Nunca  namoraria com nenhum deles. Eram todos esquisitos e sempre que podia dava uma olhadinha de leve naquela "mala assassina", morta de pavor!  Longe de mim, homem lobisomem!
Eu era tão idiota que ao me sentir excluída pelos amiguinhos do colégio por não ser uma mocinha, rezava noite e dia para ficar menstruada logo.E num belo dia, quando estava tomando banho na minha odiada bacia de alumínio senti uma coisa estranha sair de dentro de mim e esta sopa de beterraba  manchou toda a água de vermelho.
Soltei um grito de alegria e quase entrei em transe:
- Vivaaaaaaa! Agora eles me pagam.
Enrolei-me na toalha já com outra postura; olho sensual, corpo ereto, boquinha de biscoito...Havia acabado de me transformar numa  moça e precisava ter charme.Fui para a escola de mini saia, sandália plataforma e batom vermelho.Parecia uma Drag Queen.
Que felicidade, eu era uma nova mulher!
Todas ás noites eu esperava o meu pai chegar do serviço trancada dentro do guarda roupa  para que ele pudesse ficar me procurando pela casa.Era uma delícia ficar espionando pela fresta  o seu jeitinho abobado de andar em círculos feito um peru bêbado. Era sempre a mesma coisa; ele erguia o colchão, abria a geladeira, sacudia o tapete e perguntava assombrado: 
- Onde está a Silmarinha? Cadê? Quem roubou esta menina?
Depois de algumas voltas pelos cômodos, que na verdade eram dois (um quarto e cozinha), puxava a porta do guarda roupa com cara de susto:
- Ohhhhhhhh! Ela está aqui. Que surpresaaaaa!
E eu ria até mijar nas calças.Achava uma graça danada! Que sem graça!
Só que a nossa brincadeira acabou de repente porque fiquei ali sem respirar com o olho pregado no vão da porta do guarda roupa, tapando a boca com os dedos para não rir alto e assim que chegou em casa minha mãe deu a  seguinte notícia:
- A Silmara ficou mocinha hoje.
Nossa, que revelação bombástica!Meu pai ficou mudo.Guardou a pasta num canto, resmungou qualquer coisa e foi deitar.Quase mofei ali dentro, por muitas e muitas noites, porque ele nunca mais brincou comigo.Chorei quietinha no meu canto porque havia perdido o meu melhor amigo!
Eu já era obcecada por escrever textos, principalmente em inglês. Caracas, hein? Só que o meu inglês era tirado das legendas dos filmes. Anotava rapidamente num caderno a conversa dos artistas, a tradução no rodapé da TV e como se pronunciava aquela palavra em português. Depois ia até o espelho com um quilo de chicléts na boca para a língua ficar mais elástica e fazia caras e bocas numa interpretação digna de aplausos;
- Ailoveiu, mai diar.Guudimorningui mister magu!
Repetia mil vezes o mesmo textinho mixuruca até decorar tudo.Passava horas fazendo isto.Criava histórias com ilustrações nas folhas do caderno. Meu pai, coitado, balançava a cabeça pra lá e pra cá:
- Ela acha que vai ser escritora. O meu nome não é Silvio Santos.Eu sou porteiro de gráfica, menina.
Eu bufava de raiva. Queria ler para ele as minhas estórias, mas estava sempre cansado e dormia antes mesmo de terminar o primeiro capítulo.Comecei a ficar invocada com o meu pai.Achava que ele sentia desprezo por mim e uma mágoa estranha foi crescendo dentro do meu coração. Você já teve ter percebido que a minha auto estima estava no pé, mas quando minha mãe comentou rapidamente que mudaríamos daquele cortiço, soltei uma gargalhada infinitivamente feliz;
- Sério? Quando?
- Não sei ainda.Preciso conversar com o seu pai.
Xiiiiii.Então não ia rolar nunca.Ele era baixo astral e muito negativo.
- Mãe fala pra ele que eu não entro mais na bacia pra tomar banho...Eu quero ter uma sala pra receber minhas colegas da escola...Por favor!
Ela também queria isto, mas eu não conseguia entender que o meu pai ganhava pouco, que a nossa geladeira não tinha quase nada e que  eu  precisava  tomar o único iogurte  com um conta gotas para render a semana toda. Fiquei naquela baita ansiedade.
Naquela época eu tive muitos namorados fantasmas que nunca souberam do nosso romance curta metragem. Vivia uma paixão muda e adorava filmar minhas vítimas para depois ficar sonhando com elas na calada da noite. Me apaixonei por vários ao mesmo tempo, porém nada foi tão fulminante  e instantâneo como o meu frenesi por um professor de catecismo.Ele era noivo há oito anos, mas quando ofereceu a mão para  rezarmos o Pai Nosso juntos, tive a plena certeza que aquele aperto de dedos era muito mais que uma simples oração.Deveria estar  louco por mim e não tinha coragem de se declarar.Enquanto rezava com os olhos fechados eu tinha vibrações mentais de puro êxtase, sussurrando  com leveza:
- Amém! – sorria no final de cada oração.
Aquele romance platônico não durou um suspiro porque o traidor casou e eu quase sucumbi de tanto chorar na maior fossa do mundo. Mudei até de religião! Mas a minha primeira paixão, daquela forte e arrebatadora, foi pelo meu primo Marcelo. Tínhamos quase a mesma idade , éramos muito próximos e ao mesmo tempo tinha um abismo entre nós.Marcelo era rico e eu uma Zé Mané do Caramba sem eira e nem beira que não sabia quem era a própria mãe.Só que demorou para me cair a ficha.No final do ano passávamos as festas no sítio da sua família, em Pardinho, e eu me sentia como se fossemos carne e unha.Andávamos a cavalo, mergulhávamos na piscina e ríamos muito.Morríamos de ciúmes um do outro e rolava um clima platônico.Nunca lhe disse nada, mas meus olhos falavam tudo.Até que numa dessas viagens   alguém comentou para a minha surpresa;
- O Marcelo podia casar com a Silmarinha, né?Eles se dão tão bem!
E  minha tia, na mesma hora, retrucou com muita raiva;
- Não fala besteira! Tanta menina rica como ele...Meninas do Morumbi, filhas de empresário, sócias do clube Paineiras...Você acha que o Marcelo se casaria justo com a Silmara?
Mais uma vez fui lembrada de que eu era a franga do galinheiro. Bete, você me paga! Então engoli aquela saliva salgada como que se tivesse com um jiló na goela e procurei sorrir num miado fatal:
- Eu já tenho namorado.
Nisso eu e Marcelo nos olhamos e acho que tudo acabou naquele instante. Então minha tia sorriu aliviada sem perceber que eu chorava em silêncio. Percebi que nunca alguém de verdade se apaixonaria por mim e aquela triste sina me levaria a solidão!
Meu pai teve um milhão de oportunidades para me reconquistar só que isto nunca aconteceu. Ele preferia zombar dos meus sonhos, da minha cara, do meu jeito...Eu me sentia péssima: um caco.Quando era criança a gente brincava de filhinho e mamãe, de esconde- esconde dentro do nosso minúsculo quarto e cozinha, e de um monte de baboseiras que me faziam feliz.Depois  ele me matou na mesma noite e só se referia a mim para dizer:
- Amor é comida no armário. Tá te faltando alguma coisa?
Tanta coisa, meu pai. Tanta coisa que você nunca soube! E a mais importante de todas era o seu abraço que nunca mais senti!
     

 

 

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