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A  Dama de Negro é  rosa

Após 20 dias, voltou para casa, e somente depois disso tivemos aquela conversa, transparente e objetiva. Ele ainda não sabia sobre a nossa doença, e eu lhe mostrei os exames, inclusive o meu. Que ironia do destino, pois coube a mim lhe dar o diagnóstico e fazer o “aconselhamento”! Botei para fora “cobras e lagartos”. Rezei uma ladainha, deixando claro que eu também estava sofrendo. A minha vontade era a de pregar uma “bifa” na sua cara de
“palhaço”, mas a vida já havia se encarregado disso, oferecendo-nos uma nova oportunidade de recomeçar. Foi um “vendaval” de lágrimas! Choramos juntos e sorrimos, também. Éramos jovens, ainda, e merecíamos sobreviver. Estaria do seu lado, desde que ficasse do meu.
— Me perdoa... — pediu.
— Sem drogas, tudo bem? É o mínimo que você pode fazer por si mesmo.
Primeiro, eu queria entender a situação, para tentar compreendê-lo e depois perdoá-lo, se conseguisse! Cada um sabe de si. Não adianta varrer a sujeira para debaixo do tapete e fingir que está tudo lindo e maravilhoso. Só o tempo seria capaz de dizer se superaríamos aquele “Tsunami devastador”. Ele concordou com a minha principal exigência — qualidade de vida —, e mostrou-se disposto a unir nossas forças num único objetivo: viver em paz e com saúde. Esse meu modo de agir foi baseado nos meus princípios humanos, segundo os quais priorizo a lealdade e o companheirismo, principalmente nos momentos mais difíceis. Talvez um dia nos separássemos; mas não se abandona quem já está perdido, assim, do nada. É covardia!
Acredito que fiz a coisa certa, porque nada vem por acaso. Para mim, a Aids foi um sinal de alerta, para que pudesse me redescobrir e me valorizar como pessoa. É um tempo de reflexão e superação. Não é o fim. É apenas um recomeço! Amadureci muito com ela. Precisava ouvir o que ele tinha para me dizer: “Não sou nenhum idiota e sei quando é hora de parar. Pra mim, já deu. A vida está me proporcionando uma nova oportunidade de ser feliz, e não quero desperdiçar. Só se fosse muito burro! Chega! Droga é uma droga mesmo! Se fosse boa, não teria esse nome...” — declamou. Que “fofucho”! Mas não acreditei numa só palavra, porque tudo era muito recente e tinha cheirinho de tinta fresca. Quando sentisse o gosto da “branquela”
azeda, esparramada num prato fundo, convidando-o para ser cheirada
num canto qualquer, será que se lembraria daquele “babado” todo? Eu disse, de um jeito indiferente: “Estou torcendo por você.” Então, Serginho me surpreendeu, porque aquele discurso comovente vai completar nove anos, e ele realmente conseguiu parar de beber, de cheirar e de “pipar”. Não sei nem como... Não me pergunte se foi difícil, ou se sofreu muito. Eu nunca lhe perguntei e nem o cobrei nada. Eu já carregava o meu kit-problema nas costas e não tinha como dar uma de fiscal da Saúde
Pública. Que fizesse a sua parte, e muito bem-feito! Simplesmente, apresentei o meu decreto; se ele não concordasse, tudo bem, que soltasse a franga em outro galinheiro!
— Eu não preciso de droga nenhuma para dar risada, para curtir a vida,
para superar os meus problemas, e você também pode ser feliz sem ela. É “bacana” gostar de você mesmo, se cuidar, ser “careta”. E, sem drogas, sua gargalhada é muito mais gostosa! Por que você não experimenta?
– Experimenta o quê? — assustou-se.
— Essa sensação de liberdade! — sorri.
E ele iniciou a sua metamorfose, enquanto eu fi cava na retaguarda, incentivando- o e lhe mostrando, aos poucos, o quanto era “legal” ter uma cabeça boa.
— Você é tão bonito e inteligente! Me fala de você...
— Eu??? Como assim, Freud?
— É, isto mesmo. Tantas vezes eu falei da Silmara pra você... Agora me fala do Serginho pra mim. Como ele é? Do que ele gosta?
— Eu gosto de dirigir, viajar, cozinhar, plantar, pintar... — sorria.
Com o tempo, ele passou a ter um brilho diferente nos olhos. Era o brilho da vida!
— Você tem os olhos claros, meio esverdeados... Limpos! Lindos! Eu gosto de você!
Na verdade, eu estava gostando dele, porque ele também estava. E reiniciamos o namoro. Cada pessoa tem a sua maneira de reagir diante da Aids.
Não existe método ou regra. O importante é você pôr a cabeça no lugar e ser verdadeiro em suas atitudes. Para mim, tentar construir um alicerce sólido foi a base de tudo. Arrumei a minha casa interior, abri as janelas e arejei os cômodos da alma. Quando estava instalada comigo mesma, comecei a pensar em outras prioridades.
Você pode adiar algumas decisões, mas o acompanhamento médico é tudo! O Dr. Fernando Bergel, infectologista, está do meu lado desde o início e é um parceiro e tanto! Não fico “pulando de galho em galho”, porque confio na sua capacidade. Todas as vezes em que penso em desistir, ele me convence de que as coisas vão melhorar, e eu sempre acredito! Temos um  diálogo franco, e ele procura esclarecer todas as dúvidas que pairam no ar.
Para mim, é o melhor médico do mundo, porque simplesmente é o meu, é aquele que cuida de mim e compreende as minhas lamúrias.
Eu acredito que, dentro de uma equipe de DST/Aids, o profissional que vai conseguir uma melhor adesão ao tratamento é aquele que fala a linguagem do paciente, que joga limpo com ele, que é verdadeiro e claro, sem se tornar rude. É aquele que compreende as “dores” do paciente e que, mesmo sem sentir, é solidário a ele, respeitando o momento dele. Esse profissional não precisa ser, necessariamente, o coordenador, o enfermeiro ou o médico.
Precisa ser o amigo de todas as horas, disposto a ouvir, orientar e acalentar, muitas vezes sem saber se vai ser compreendido ou correspondido, mas com a convicção de que procurou fazer o seu melhor.
No começo, qualquer dor de dente era motivo para eu colocar um pijama e “ficar de molho” o dia inteiro, esperando a “Dama de Negro”. Só que ela nunca vinha. Então, eu saía andando. Não tomava refresco gelado nem pegava sereno. Mesmo no verão, usava casaquinho de crochê, sentindo-me a “Sinhá Moça” da terceira idade. Era uma “comédia”. Depois, percebi que não precisava ser assim e, aos poucos, tudo foi voltando ao normal. Não tive hepatite, vaginite, tendinite, gengivite, “frescurite”... Nada! Continuava inteira e “Vivinha da Silva”. Entrei na dança do ventre e, depois de oito dias, saí... Participei de concursos de contos, de pipas, de esculturas na areia...
Engordei, emagreci... Chorei, dei risada...
Trouxe para casa um monte de livros sobre Aids, para levantar o meu astral; só que alguns eram antigos e, na última página, todo mundo morria, até o autor. Na contracapa, havia sempre uma foto in memoriam meio torta, com a cara do sujeito enfumaçada. Parecia que tinha tirado do Além, em alguma praça do purgatório!
Então, percebi que aquilo era passado. Há algum tempo, tínhamos poucos recursos, e foi uma época muito difícil. Aliás, difícil era apelido! Muita gente boa partiu, sem ter a oportunidade de um tratamento “legal”. Agradeci a Deus por fazer parte de uma nova geração, com direito a remédios “gratuitos” e exames modernos.
Genotipagem é um luxo total! Esse exame estuda as mudanças genéticas do vírus HIV, indicando o tipo de medicamento anti-retroviral com maior probabilidade de atuação, como que se fosse um tratamento personalizado. Só falta vir com o seu RG e uma foto digital. CD4 e carga viral são tudo! Por meio deles, você sabe a quantidade do vírus HIV e das células de defesa, existentes na corrente sangüínea. E olha que os vírus se reproduzem feito
coelho! São como parentes de temporada: chegam sem avisar, vão arregaçando  com tudo, abrindo geladeira, fritando ovo e, quando notamos, já tomaram conta do pedaço. Você vira o inquilino e, eles, os donos do “mocó”. Depois, é claro, de chupinhar tudo do bom e do melhor que você tem...
Às vezes, até me esquecia do assunto. Soltava uma gargalhada, e pronto!
O problema tem o tamanho que você enxerga. Se você coloca muito fermento no angu, ele cresce tanto que até derrama. É preciso minimizar o acontecimento, para que ele não domine a sua vida. Não viva em função dele! Na verdade, ele não merece tamanha devoção. Garanto que você tem outras coisas para pensar, fazer, curtir... Nada o impede de ser feliz!
Após algum tempo de afastamento, retornei ao serviço. Estava um clima estranho no ar. Parecia cenário do filme “A nOIVA dO cHUCK”, com direito a neblina e morcegos voadores. Conforme os amigos selecionados foram se aproximando, arrumei um jeitinho de dizer: “Tenho HIV, mas estou bem.”
Alguns choraram comigo, oferecendo palavras de conforto. Mesmo sendo profissionais da Saúde, eles vivenciaram pouco sobre Aids. Ela ainda era uma assombração do “outro mundo”. Foi um festival de caras e bocas; uma choradeira danada, seguida de sorrisos solidários: “Meus Deus, que horror!
E agora? É o fim, mas você vai ficar bem!”. Era uma contradição de palavras e sentimentos: “Seja forte, porque é barra. Não tem cura, mas não esquenta a cabeça.”
Depois, passou. Ninguém consegue ficar de lamúrias por toda a vida.
Uma hora cansa, e a poeira abaixa. Outros nunca tocaram no assunto, mas sorriam em sinal de amizade. Eu percebia um gesto de solidariedade em cada um deles: num sinal de “positivo”, num abraço mais forte, num afago diferente... Fui acolhida e amparada por gente que nem conhecia direito. Fiz novas amizades e me aproximei mais das pessoas. Eu busquei os “contatos imediatos”. Precisava de apoio. Acho que, se tivesse me afastado de tudo e de  todos, teria enlouquecido na solidão.
Imagine só a cena. Eu, jogada às traças, com o olhar perdido no horizonte, delirando de tristeza: “Não, não quero ver ninguém. Deixe-me ir de uma vez! Vovó Conceição, venha me buscar!”. Não têm sentido o isolamento, a quarentena, o casulo... É impossível viver assim! Amigos de verdade superam suas próprias indignações, só para ficar do seu lado. Não importa a  quantidade. Amigo não se conta com os dedos; pesa-se na balança. O que
vale é a consistência de cada um.
Agora, sempre tem os “cafonetes”, que ficam com aquele jeito de velório, como se você fosse morrer ali, no colo deles. Reviram os olhos, com piedade,  e estendem a pontinha dos dedos, receosos: “Coitadinha, que tristeza! Deus vai ter misericórdia!”. Já outros se pelam de medo de que você use o mesmo copo, e passam a levar canudo de plástico para tomar o café na xícara.
Eu já sofri preconceito e discriminação, mas não quero ocupar as páginas deste meu livro para me lamuriar com a falta de informação das pessoas. Um dia, elas também vão aprender que Aids é uma doença como as outras.
Passei por isto e por aquilo. No começo, fiquei magoada e resolvi procurar
a equipe de DST/Aids, perguntando sobre as maneiras de transmitir o vírus HIV. Maria Joana me explicou: “Quando uma pessoa é contaminada pelo vírus da Aids, diversos fantasmas passam por sua cabeça. Um deles é o medo de contaminar os outros. No entanto, o HIV não é um vírus que se transmite facilmente. Doar sangue, amamentar, fazer sexo sem camisinha
e compartilhar agulhas e seringas com outras pessoas são atitudes de alto risco, que podem transmitir o HIV. Mas beber no mesmo copo, usar o mesmo banheiro, beijar, abraçar, não oferecem o menor perigo.”
Não tinha sentido aquele medo todo e, só de birra, passei a freqüentar a cozinha cem vezes por dia. Precisava quebrar esse mito. Já temos fantasias demais sobre o assunto, e a verdade é sempre soberana. Com o tempo, eles foram se acostumando, e eu nem lembrava mais daquela situação patética, mesmo porque Dr. Fernando e Maria Joana, a meu pedido, foram  pessoalmente esclarecer as dúvidas da galera. Parecia um programa de auditório, com todo mundo perguntando se “pega assim ou pega assado”. No final, virou uma festa de despedida de solteiro, com muita risada e bolinho de chuva!
Nunca fiz questão de esconder nada. Só mantive a minha privacidade, porque não acho “legal” expor a minha família com depoimentos bombásticos. Não há necessidade de carregar um luminoso na testa, abrindo o diagnóstico até para o carteiro: “Desculpe a demora! É que sou soropositivo, e estava tomando banho”. Ou para o açougueiro: “Bom dia! Eu queria uma costelinha bem bonita. É que sou soropositivo, e vou fazer com batatas ao forno.”.
Ninguém sai por aí com uma placa no peito: eu tenho HIV, eu sou gay, eu tenho doença venérea, eu uso a calcinha da minha esposa, eu sou viciado em cola, eu tenho hemorróidas desde criança... Certas revelações só devem ser ditas no momento oportuno, senão vira “palhaçada”. E as pessoas respeitaram os meus limites, compreendendo o momento de falar ou de apenas ouvir. Nunca ninguém “chegou já chegando”.
Uma das primeiras consultas no infectologista foi uma lamúria total. Eu precisava dele! Não somente do seu conhecimento, mas da sua solidariedade.
Ele explicou-me que deveria fazer outros exames, como o CD4 e a bendita carga viral. Que conquista maravilhosa! Pouco tempo atrás, isso era uma fábula, e o tratamento era feito quase “no escuro”. Algumas pessoas conseguem manter a carga viral abaixo de 50 cópias por mililitro. “Bacana”, mas se o tratamento for interrompido, o vírus volta a se multiplicar rapidamente, e aí toca a correr atrás do prejuízo. Nesse caso, o laudo do exame vem escrito “INDETECTÁVEL”, o que jamais deve ser confundido com “CURADO”. Algumas religiões leigas no assunto acreditam que a pessoa está curada, estimulando o abandono do tratamento. Preste atenção neste detalhe: já obtivemos várias conquistas importantíssimas e  temos um número maior de remédios, mas infelizmente ainda não existe
cura para a Aids. Essa é a nossa realidade atual. Se for comprovada cientificamente
a cura de alguém, com certeza ele não vai aparecer apenas em uma igreja ou comunidade. Essa pessoa ilustre vai dar seu testemunho para toda a galáxia. Portanto, esqueça! Esse milagre ainda não aconteceu, baby.
Naquela época, esses exames eram feitos de madrugada, porque as amostras iam para outra cidade. Quando chegávamos ao Banco de Sangue, parecia uma reunião da máfia, pois ninguém queria ser reconhecido, e alguns usavam gorros e casacos. Era um silêncio danado! Eu mesma ficava  muda, com medo de que me perguntassem alguma coisa comprometedora.
Minha vontade era ir embora, antes mesmo de chegar. Ficava escondidinha atrás da porta, como se estivesse apenas fiscalizando o ambiente. Havia algumas pessoas nitidamente debilitadas, e isso impressionava bastante.
De repente, alguém brincava: “Eu, na verdade, nem sei o que estou fazendo aqui, acho que errei de endereço!” Era o momento de afrouxarmos o cachecol, de tirarmos a touca e abrirmos o casaco. Nisso, cada um falava um pouco de si, trocando dúvidas e experiências. Ali, eu podia observar os rostos e as personalidades daquelas pessoas tão misteriosas, que apenas conhecia pela estatística! Elas tinham nome, como eu, e conversavam comigo.
Não eram somente números; eram de carne e osso. Se depois, no entanto, encontrássemo-nos pelas ruas, era como se nunca tivéssemos nos visto antes. Isso soava como um código de solidariedade, demonstrando que respeitávamos a privacidade de cada um.
Engraçado como passamos a ter pavores, incertezas e manias semelhantes!
A morte passa a ser o grande dilema, o futuro, algo incerto e a visibilidade, quase uma obsessão. Nós nos incluímos automaticamente numa comunidade secreta, e assim vamos levando, “só no sapatinho”! Que esquisito viver assim! Eu ainda estava repleta de preconceito e queria me curar, mas ele é uma doença crônica, que precisa de tratamento constante e duradouro. Nós o alimentamos durante anos, como se fosse um bichinho de estimação e, quando nos damos conta — se isso ocorre —, ele já se transformou num monstro “gorducho” e guloso, digerindo toda a nossa dignidade. É preciso algum tempo para dar um pontapé nele!
Sou uma pessoa branda, mas tenho uma personalidade forte. Posso não saber o que quero, mas sei muito bem o que não quero:
— morrer de Aids por omissão, eu não quero;
— punir-me com uma chicotada nas costas, admitindo a minha máxima  culpa, eu não quero;
— viver com uma máscara do “Zorro” pregada na cara, nem pensar.


 

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