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Tudo depende do Prisma...

Cheguei do serviço toda acabada com mil badulaques na não.Abri a porta de casa com muita dificuldade por causa do peso das tralhas.Acendi a luz e cai no sofá, morta de cansaço.Tava com o sono atrasado, com fome e com saudades dos meus pais.
- Ainda bem que ele deu um tempo.Agora vou dormir um pouco.
Nossa, não precisei nem falar mais nada.Ouvi um barulho no chuveiro e alguém cantarolava músicas idiotas; sem ritmo, sem letra, sem enredo.E quem seria aquele cantor mais idiota ainda? Ai, que susto.Era o próprio.
- Caraca, que porre.Você quase me matou do coração.Como você entrou?
- A sua vizinha veio dar comida pro gato e eu pulei a janela enquanto colocava a vasilha no quintal.-gritou.-Sil, vem tomar um banho comigo.Ai você relaxa! Anda muito nervosinha.Não pode.Vem, preciosa!
Preciosa?! Comecei a rir.Por que não? Um banho ia muito bem.Mas e ai, pelado?
- Fábio, você ta peladão?
- Claro que não, né? É maior falta de respeito.Na sua casa ainda? O Oscarzão me mata! Tô de bermuda.A bermuda marrom dele.
Abri a porta do banheiro com a pontinha dos dedos e era verdade.Estava todo vestido e  ensopado, usando até chinelo de dedos.Caímos na risada porque seu cabelo estava com três andares de shampoo.
- Você  coloca uma camiseta e entra aqui comigo, linda.Vem, a água ta quentinha.Iuiuuuu! – rebolava a carcaça. E tomamos o nosso primeiro banho juntos. Ele me lavava os pés e eu esfregava a batata da sua perna com uma bucha.Depois começamos a fazer guerrinha de sabonete.Corri dele e me atirou um bem no meio da testa.Escorreguei  e tropecei no tapete.
- Como vai os seus debutantes?
- Debutante?!
- Não se faça de sínica.Sei que você dá o maior mole na faculdade.Eu fico te espionando, boba.Ontem você tava de papo com um gorducho e achei que fosse transar com ele no meio do pátio.
- Eu tava mesmo.Como sabe?
- Trepei no muro.Ali eles não conseguem me enxergar.Fica tranqüila, ninguém me viu.
É mesmo.Ninguém podia vê-lo porque costumava sair de pijama rasgado e parecia um mendigo.E se casássemos, como seria? Não conseguiria escondê-lo dentro de casa para o resto da vida.
- Aquele Zé Povinho falava de você, Si.- envenenou- Se eu fosse você não pisava mais naquela espelunca.Você não vai estudar hoje, vai?
- Não inventa moda! Pára de falar o meu nome.Dá um tempo pra minha cabeça, Fábio.Você viaja na maionese e eu piro junto.Preciso respirar novos ares.Ás vezes você me irrita com suas baboseiras.
- Sério? Um dia você vai sentir saudades de mim.
- Pode ser.Um dia, quem sabe.Sua loucura é cansativa.Fala sobre política, problemas sociais...fala qualquer coisa, pô! – comecei a chorar: - O que você acha do presidente da República .Fala aí...Aposto que você não sabe nada.
- Minha querida, eu e ele jogamos no Juventus.Sempre foi um cara trancado, sem “gração” e corria atrás da bola todo perdido com sua bundinha de pudim amanhecido!
O quê?! O Presidente da República? Foram anos assim. Quando queria me contar sobre as melancias que corriam no pasto, eu prestava muita atenção, perguntando-lhe sobre elas. Como
eram; grandes ou pequenas. Ele às vezes respondia: “Tudo depende do prisma”. E eu conseguia compreender. Era uma questão lógica. Tudo realmente
depende do ponto de vista. Ele estava certíssimo. Então ríamos, confirmando com a cabeça.

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O povo inteiro comentada da gente.Diziam até que eu estava grávida do Fábio.Bobagem! Não fazíamos nada com nada.Estava começando a sentir saudades dos meus pais.Abracei o casaco de crochê da minha mãe pai e chorei.Queria colo!
- segunda-feira...lavando a louça suja de madrugada.
- terça...tomando banho de roupa e meias.
- quarta feira...London London ! – música no rádio.
- sexta-feira...acabou a comida.Fome!
- sábado...só tem ovo frito com sal. Socorrooooo!


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“ Vou recomeçar.Vou tentar viver.Vou tirar você da minhas vida.E pra não chorar, antes dee partir vou tentar sorrir na despedida” – Fafá de Belém-

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Desci as escadas  de casa, assobiando minha música preferida.De repente vi um alien   meio gay  se equilibrando no muro.Parecia um andróide desmunhecado.Soltei um grito  e ele também, caindo feito uma jaca podre no chão.
- Trouxe alguma coisa pra eu comer, Fábio? Tô podre de fome.
Sorriu feliz da vida em poder ajudar.Piscou os olhinhos com cara de danado e jogou um monte de doce em cima da mesa.Estava tudo entalado dentro dos bolsos e  surpresa!
- Tem Danone pra sobremesa.
- Sério!!! Você é tudo na minha vida.
De madrugada ouvia passos no quintal e morria de medo.Sabe quem era? Alguns moleques nos espionando.Depois escreveram no muro que eu era galinha.Uma galinhona pesada.
Seu pai fez sinal que queria falar comigo.Subimos no seu escritório e me pediu pra sentar:
Eu usava longas tranças e mordia um doce de abobora:
- Vai me dar alguma bronca?
- Minha filha, todo mundo ta falando de vocês.O Fábio não dorme mais em casa...E quando o seu pai voltar, hein? E se você engravida numa dessa? Pelo menos você se cuida?
- Como assim? Claro que me cuido.O senhor pensa que sou alguma boba.
- E você toma o quê?
- Biotônico.Tomo  muita vitamina de abacate e procuro me alimentar bem.
- Você ta falando sério comigo? Se você engravidar, fala com a gente.Com a Tereza.Ela é mãe também.Ele assumi, com certeza.Isto é sério.Não é brincar de boneca.
- Seu José, a gente só dorme junto.Eu não faço nada com seu filho.
- Nada??!! Ele não te procura?
- Claro. Me procura quase toda hora.
- Nossa, que potência.
- Me procura direto.Agora mesmo tava me procurando em casa.
AHHHHHH!QUE VEXAME.
- Minha filha, se você sentir que as suas regras...bem, as suas regras  faltarem...se abre comigo, catano.A gente faz esse casamento aqui mesmo na fábrica e vamo que vamo.Eu sou louco por  um neto.Falou e falou.Não entendia nada e só balançava a cabeça rindo.
- Ele não tem namorada?
- Fábio é homem.Tem um monte de mulher pra transar.É só pra satisfazer seu instinto, entende? Eu acho que ele gosta de você.E se der tudo certo, essa fábrica é de vocês porque é o único filho que realmente me ajudou.E as casas... o caminhão...Tudo que é meu,  é dele.
        
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A sua família foi viajar para o Rio de Janeiro e fiquei sozinha naquele feriadão.Alívio.Precisava dormir, come e recuperar minhas energias.Fábio deixou uma mini  cesta básica para que pudesse traçar aos poucos.Chegaram após dias em Copacabana no apartamento do seu irmão. De madrugada tudo acontecia.Até os gritos assustados vindos da sua casa.Barulho de briga.Seu pai tentava cortar seu cabelo com um facão.Soco na cara.Desespero! Rezei baixinho pedindo paz.Dois toquinhos na porta.Saco!
- Deixa eu entrar.Fecharam a porta pra mim.
- Por que será, hein Inocêncio?
- Eles querem me internar de novo.Tenho que dormir aqui.
Sentamos no sofá. Passeata na sala.Fritou hambúrguer, ovo, bife, cebola no pão...Fez uma gororoba e tomou tudo num gole só.
- Eu tenho que dormir, cacete!
- Silmara, eles me colocaram pra fora de casa só porque mexi no gato.
- Que gato?Tá louco?
- O gato da cadeira que veio embrulhado na sacola da tia Mafalda.
AHHHHHHH??!
- Cala essa boca, Fábio.Por piedade.Você parece uma assombração.Eu preciso trabalhar daqui a pouco, meo.Vai embora!
- Por favor, eu durmo no chão.
- Você bateu no seu pai de novo, né?
- Ele se machucou com o pedaço de pau.- ria deixando a saliva escorrer pelo canto da boca.
- Seu monstro! Some daqui.
Empurrei seu corpo para fora de casa e passei a chave.Fui direto pro tapete da sala e dormi até tarde.Saco! O meu chefe já tinha me dado uma advertência verbal por causa das faltas.Quando abri a porta para colocar o lixo pra fora Fábio estava enrolado num trapo velho no meio do meu quintal.Meu Deus! Coitadinho.Parecia um mendigo.
- Acorda, Fábio.Dorme aqui dentro, vai. Tá muito frio, meu bem.
Nem se moveu.Pulei seu corpo fétido e sai pra rua.Tinha que respirar outros ares.Precisava ser feliz! Ele me deixava confusa, atolada num mundo paralelo ao meu.

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Fui pra faculdade arrasada porque seu pai dizia com a boca cheia  e olho roxo que iriam interná-lo novamente.Uma   baita  dor me consumia por dentro.Meu Deus, olhe por nós.Procurei as chaves de casa e abri a porta chorando.(Fábio, cadê você.Eles vai te prender de novo.Preciso  te achar).

Haviam deixado toda a responsabilidade para mim, com um prazo curto, para  levá-lo ao psiquiatra.
- Se ele não fizer o tratamento de novo, vamos internar.
Senão, inhoc!Senão isso...Senão aquilo.Era um peso nas minhas costas.Acendi as luzes e sorriu no meio da sala.
- O que aconteceu, pitica?
- Seu louco, me abraça.
- Fui acariciando seu rosto com a ponta dos dedos .
- Ás vezes as pessoas não são como a gente gostaria que fossem, mas vamos ter paciência, irmão.
- Pô, que mancada a minha.É que me fazem de bobo e estou cansada disto.
- A violência não justifica a violência. Você precisa me ajudar a cuidar de você!
Pesadelo.Fome. Comida  só no osso!Emagreci  dois quilos de pura fome e preocupação.A sua família me pressionava e o seu destino estava em minhas pequeninas mãos.Mãos ainda de criança!
Cheiro de macarronada no ar.Sono atrasado.Enjôo. Menstruação atrasada.Será que daquela vez estaria grávida de um simples  acocho? Pode? Sei não.Era caso de se pensar.

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Ovo, ovo, ovo! Que ova. Estávamos esgotados pelas noites mal dormidas em frente a televisão.Deitei em seu colo como inúmeras vezes.
- Tira a meia.- pedi.
- Tá cheirando mal?
- Não.Tá uma delícia; me lembra um pedaço de pizza.Hum, quero dar uma mordida nela.- rimos.
Joguei os sapatos pro alto em berros:
- Meu Deus, eu preciso comer. Dormir, conversar com gente normal...Eu quero viver!
- Calma, pepita.Sem estresse.Nossa, como você é psicopata.
- Eu quero a minha mãe, Fábio.
Nisso comecei a me debater, socando o seu peito duro como uma rocha na costeira:
-  O seu pai colocou um peso nas minhas costas...Você sabia bololó querido que enquanto espanca toda a sua família eu tenho que me virar do avesso para colocar um breque na sua ira desgovernada?!
Ele ria com aquele jeito estranho.Trançou os meus braços pra trás e apertou em seu corpo.Fomos nos ajoelhando até o chão e ficamos grudadinhos; me pegou no colo me colocando no almofadão do sofá.
- Eu quero sumir deste mundo, meu filho. Tenho medo desta casa...de você...da sua loucura que está me deixando pirada!
- Fica quieta.Tudo vai passar...Psiu, quietaaaa!Dorme.
- Quando, me diga? Quando tivermos filhos loucos também?
Eu estava no meu limite.Arranhei todo o rosto com as próprias unhas.
- Quero pirar com você.É cômodo.É fácil...Me dá o que você tomou, cheirou ou se aplicou.Foi cocaína, êxtase, fumo, bolinha, pílula, doce...fala, pelo amor de Deus!
Joguei os cabelos para trás  com o rosto todo borrado pela pintura.
- O que foi, linda?
- Á merda você.O que foi? Bate o seu pai, nega um tratamento, não toma remédio nenhum, se acha normal, anda de pijama o dia inteiro, me faz passar vergonha...e ainda me pergunta o que foi?
- Já sei o que você quer.Marca o psiquiatra que eu vou com você.
Levantou-se me deixando pasma.
- Com você e por você eu topo qualquer coisa!
Pulei em cima dele.
- Sério? Vamos comemorar então.
Revirei todos os bolsos e bolsas , achando um último tostão furado.
- Vai lá na padaria e trás um lanche pra nós enquanto eu faço a mesa, Fábio.
- Não saio de casa.Tenho fraqueza nas pernas.Vai lá você.Eu te espero aqui.
Saco, hein? Precisava me acostumar com esses detalhes.
- Tá bom.Tudo bem. Sabe, eu queria que  soubesse que te amo e estarei sempre ao seu lado.
- Obrigado, de coração.Mas vai lá logo, to com fome.Quero com presunto e trás um Danone de morango.Vai, vai, rápido, hein.Não demora! Quero comer logo.
- Acho que o dinheiro não vai dá.Você não tem nada ai?
- Eu sou o maior pobretão.Meu pai me paga em bala.

- Aff, que pobreza , hein? Miserável.
A noite fiz uma prova ferrada em dez minutos e ainda tirei dez.É mole? Voltei na velocidade do vento porque tinha medo que neste tempo fizesse alguma coisa ruim.Quando cheguei em casa era mais de meia noite e já dormia na nossa cama.
Ás três horas da manhã  acordei com alguma coisa estranha me cutucando o meio da perna.O joelho? Não, você sabe que não.
- Nossa, como dói.- e rasgava a sua blusa.
- Calma, não vai doer mais.Relaxa.Conta uma piada...Você comprou o gás?
Naquela hora comprar gás? Me beijou todo o rosto pedindo perdão.Fechou o zíper da calça.Foi embora.

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Entrou na minha sala mumificado e parecia envelhecido  mil anos. Estava rígido , com os olhos empedrados.Seus lábios não mexiam e fiquei com medo.
- Vai embora.Há dias que eu não como.Vai pra sua  casa e me traga um prato de comida.Pode ser de arroz com feijão.O que você tomou? Tá um monstro.
- Fica calma. Me deixa.
As suas olheiras dobravam a esquina.
- O que você usou , Fábio? Fala, seu pústula.
- O Haldol que você quer tanto, querida.É pior que pó.
Falava pausadamente feito um robô.
- O que ta acontecendo com a gente? Você ta drogado, meu filho.
- Estou dopado, minha filha.
Sacudi seu corpo fúnebre .
- Para com o Haldol, então.Pára.Ele vai te matar.
- E se eu não tomo morro mais rápido internado num sanatório.
Chutei os moveis. E agora?
- Meu Deus, eu não sei mais o que fazer...Eu só quero ser feliz.
Ele já não dormia na própria casa e soube que arrombou um barraco na favela da Vila Prudente.Levou consigo a roupa do corpo e  ouro..Tinha uma big corrente com a imagem de Jesus  Cristo e pulseiras.
Seu pai me procurou desesperado pedindo ajuda.Desci as escadarias  daquela sua nova mansão de cimento enquanto  um moleque descalço ia na minha frente para mostrar o caminho.
- Ele está ali.Disse que se chama Damião.
- Mas o nome dele é Fábio.
- Ele é seu marido?
Marido? E agora?E agora, meu Deus??!!? Fiquei com vergonha como tantos outros.Sociedade cruel!
- Não.É meu irmão.
Como fui covarde e o neguei três vezes ao cantar do galo.Comia um pão duro com ovo.Sorrimos.Choramos.Abri os braços lhe chamando de volta:
- Vamos pra casa.
- A minha casa é aqui.Eles me receberam tão bem, Silmara.Olha só, este é o Buru.
- Olá, Buru.-Obrigada por tudo.- beijei seu rostinho gelado.- Eu to tão sozinha, Fábio! Você  me faz tanta falta.Tenho medo do escuro.Volta comigo, pelo amor de Deus.
Sorriu e me deu a mão em sinal de paz.
- É , tenho que cuidar de você.Vamos.
- “Bora”, então? Eu consegui umas moedas.Vou fazer um rango pra nós, Fábio.
Despediu-se de todos e ainda mastigava o pão duro quando viramos a esquina de braços dados como duas comadres.
Quando chegamos na nossa rua após horas andando a pé porque não tínhamos nem dinheiro para o ônibus, não quis ir para a minha casa e muito menos para a sua.
- Não pertenço mais a família.Essa gente é mercenária.Sou o empregado.
Pulou o muro do seu terreno  onde guardavam os fardos de estopa  e ficou por lá.Eu estava sem forças e precisava continuar a minha rotina de vida.
Arreganhou as portas de um carro velho que tinha ali num canto e fez de lar por muito tempo.Toda a vizinhança  já havia se acostumado em vê-lo dentro daquela Variante ridícula. Aos poucos levou algumas peças de roupa e tomava banho gelado na fábrica.Tinha um matagal enorme ao redor do carro e não gostava daquela cena, que era humilhante para um ser humano.
- Fábio, você não precisa disso.
- Essa é a minha nova casa.Fica a vontade, Si.Mi casa tu casa!
Puxei um paralelepípedo para sentar.Abri os bolsos do casaco tirando um pedaço de lanche frio.Tinha sobrado da janta.
- Volta a dormir comigo lá em casa.
- Não é legal.As pessoas ficam falando de você, Silmara.
- Tá certo.Verdade! Meus pais estão pra chegar nesta semana.Trouxe um cobertor pra você.
- Jura? É lindo demais.Obrigado.
- Como se sente?
- Melhor.Não tomei o Haldol ainda.Só quero ver.
Embolou o cobertor velho debaixo do braço e fechou o vidro daquela bicheira com toda a panca possível e imaginária.
-  Vai dormir, vai.Boa noite.- despediu-se devorando aquele lanche como se fosse o melhor do mundo.- Depois a gente conversa.
E me deixou falando sozinha, acomodando-se no banco de trás.
Meus pais voltaram e foi uma festa.Não pensei que gostasse tanto deles.Fábio sumiu por um bom tempo e na primeira tempestade correu de  volta para o seu quartinho pecaminoso, passando como uma flecha na viela.Resolvi lhe fazer uma visitinha rápida e me recebeu cheio de amor para dar.Tirei o tênis , a calça comprida, a jaqueta molhada da chuva e fiquei ali, piscando olho.
- Você acha que sou algum paspalho, né?
- Não? Então prova.
Plantei bananeira quase pelada.
- O que você quer? Transar comigo? – perguntou.
- Como assim? Você não pode.
- Mas você gostaria?
- Eu fico com você de qualquer jeito.
Virei a bunda e fiquei de costas para ele, desenhando corações na parede com a ponta do batom rosa choque.
- Eu quero você todinha!
Os suspiros foram aumentando e ele suava frio.De novo.
- Ai, Senhor.Me proteja.Eu amo você.- murmurei.
Grudei na gola da sua camiseta furada e senti muita dor.
Resolvi me entregar a ele, porque senti que era o momento de termos mais intimidade. Eu já tinha quase  vinte anos. Foi tudo muito rápido e me deu um vazio danado.As lágrimas escorriam na fronha do travesseiro.
- Fala comigo, Silmara.Te machuquei, né?
Machucou, por dentro.Ele violou a minha alma!  Queria que já fosse meu marido.Aquilo feria os meus bons costumes.Fiquei quieta.
- Tudo bem, querido.Agora sou tua, de verdade.
- Você sempre foi minha; amiga, inimiga, irmã, mulher...Menos amante.Essa palavra é muito forte! Fica feio pra você. O seu pai ta de olho, hein? Olha os modos.
Nos encontrávamos todas ás noites  e já tinha “bombado” na faculdade de tanta falta!
Comprei bexigas coloridas, enfeitando todo o quartinho com flores do jardim da
Dona Sara. Levei um rádio AM/FM para ouvirmos as nossas canções preferidas e uma Bíblia para que pudéssemos ler no final da noite. Subi na cama e levantei o vestido, mostrando-lhe a calcinha, em silêncio. Virou o rosto, mascando chicletes: — Eu não posso. Chega.Uma vez só foi o suficiente pra me matar de remorso.Não tenho nada de bom para lhe oferecer.— me encarou. — Sou doente. Você sabe disso. Não quero te iludir, te enganar e nem te desonrar!”
— Mesmo??? — deitei-me no seu peito.
— Eu tenho muito respeito por você. Não quero te fazer uma moça infeliz!
— Então fica comigo, pra me fazer feliz. Só  mais hoje e nunca mais.
E fizemos amor , como eu nunca havia feito com ninguém. Era a união de nossas almas e a promessa de lealdade eterna. Passamos o verão, outono e inverno embaixo dos lençóis macios ou envolvidos no nosso cobertor xadrez. Ali, dentro daquele quarto, ele era o homem mais normal do mundo, e eu a mulher mais feliz! Nunca fomos ao cinema, sorveteria ou a nenhum lugar “bacana”. Ele passava horas olhando para o teto, sem se mexer. Eu ficava velando o seu sono, enquanto ouvia a algazarra na rua. Por que tinha que ser assim, meu Deus? Eu sentia vontade de dançar, de sair e curtir a vida. Tinha saúde para isso e merecia tudo de bom; porém, eu havia escolhido o meu próprio caminho e deveria ir até o fim. Para nós, não existia Natal, ano-novo, aniversário... Nada! Ele sempre dormia,  me deixando sozinha. Depois eu saía sem fazer barulho e ia para a minha casa, ouvir os sermões da minha família, que não se conformava com tudo aquilo:
— Mãe, esse é o meu destino, é o que eu escolhi para mim! Por favor, já é tão difícil... Talvez a senhora não acredite, mas nós iremos nos casar e teremos dois filhos. O primeiro vai se chamar Raphael e o outro, André...Viveremos por muito tempo juntos, e ficarei do lado dele até o fim. É assim que deve ser! — suspirava.
— Isso é que é fidelidade, hein!? — tirava um barato.
— Isso é muito mais que fidelidade. É lealdade.
Eu era feliz daquele jeito, porque não conhecia um outro tipo de felicidade.
Nunca quis me envolver com outra pessoa, porque sabia que se ficasse com alguém, talvez não voltaria com ele. E a nossa promessa? Iria “pro saco”?
— Eu não posso, mãe. Me deixa! Antes mesmo de a gente nascer, já
havíamos nos prometido, entendeu? É assim que deve ser. Tudo vai passar
muito rápido. Acredite.
E ela não conseguia me entender:
— Lá vem você com a mesma ladainha! Qualquer hora a gente some deste lugar...Vou pra Ubatuba.Falam que lá é um paraíso!Quando, de repente, ele tinha uma melhora súbita, cansava-se de mim, procurando outras mulheres e se enroscando com elas pelos becos da rua.
Cheguei na sua casa sem avisar e estava com a empregada na cama, aos trancos e barrancos, como dois nefastos.
- Silmara, esta é a minha namorada Leda. – sorriu, com cara de bunda.Leda, esta é a Silmara, minha vizinha do fundo. Ela não é simpática?
- Simpática??!E se eu lhe meter a mão na cara agora, você ainda vai me achar simpática?
Eu sabia me cuidar , mas ele não.Envelheci 80 anos.Quase morri de desgosto.Subi a viela chamando por minha mãe.Quando abriu a porta da cozinha cai nos seus braços:
- Mãe, me leva embora daqui.Vamos pra Ubatuba, por favor!
Ela chorava comigo.Fez um chá quentinho enquanto dizia que aquele rapaz não era pra mim.
- Paaara. Eu sei disso.Mas quem pode com a força do amor?
Que ódio daquele nojento! Então, ficava só na torcida, esperando que um surto bem de leve lhe passasse o rodo. Era só uma questão de tempo. Fuzilava seus olhos, praguejando: “Sua batata tá assando, traidor!”. Não dava outra: logo, alguém da sua família me chamou no muro, implorando que fosse vê-lo, porque estava desmontando toda a casa. Eu exercia um fascínio sobre ele, porque confiava em mim. Nunca menti para ele e jogava limpo! Então, eu o encarava com a voz branda, mas firme: “Fábio, dá um tempo! Chega de palhaçada! Vamos conversar? Por que você tá armando esse barraco todo?”. Ele apenas sorria.
Nisso o abracei  com carinho, dizendo que tudo estava bem, e ele relaxou, indo dormir.
Tivemos momentos de tristeza e de alegria; compartilhamos desejos e conquistas. Rimos
e choramos. Fizemos amor, dançamos juntos em cima da cama, viajamos para Santos, devoramos pizzas enormes, dormimos abraçados sobre as estopas, juramos fidelidade e lealdade..E a tal de Leda? Nunca mais ouvi falar dela.A minha melhor  amiga era a Rose e nos dava a maior força.


 

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