top of page

                                  Querido diário fofoqueiro



Era início dos anos 80, e numa tarde ensolarada de verão, os meus olhos  se perderam nos dele, me senti preenchida como se tivesse encontrado  a outra parte da minha própria alma.
Eu e a minha “amigo-inimiga” Adriana passeávamos em frente à porta da sua fábrica e ele começou a mexer comigo. Comigo??! Nunca ninguém havia mexido comigo.Passei a caminhar mais depressa e o moreno com nariz de tucano sorriu para mim:
- Qual é o seu nome?
A sua voz era muito baixa, rouca e ele sorria com os olhos.
- Silmara.E o seu?
- Fábio.Sou o dono da rua.- brincou.
- Desta rua brega?Tem tudo a ver mesmo. Logo vi.  - fiz careta.
- Quantos anos você tem?
– Trinta.- respondi zoando.
- Até que você  tá enxuta, hein ? Na verdade tem quarenta com cara de nove. É muito engraçadinha mesmo. - ajeitou uma peça da moto - Quando crescer, vou me casar com você! Quer ser a mãe dos meus filhos? Dou casa, comida e roupa lavada!
Eu ria como uma “caipirona abestada”, tapando a boca com as duas mãos.Achei que ele estivesse me cantando.
- Sai fora.Eu hein! - disse, mas já pensando: - esta rua é a minha cara. Eu vou me dar bem!
E sai trotando pra dentro de casa, morta de felicidade. Ele era lindo, o mais lindo do mundo e estávamos apaixonados.Desde quando? Desde sempre.Ele havia se interessado por mim e até chorei de emoção.
- Será, meu Deus?! Ele gosta de mim!Senti que era verdadeiro.
Com 12 anos de idade, após aquele instante mágico, apaixonei-me perdidamente por ele, deixando todas as bonecas de lado para viver um grande amor. O seu nome era Fábio, tinha 18 anos, cursava Engenharia Eletrônica na Fundação Getúlio Vargas e era tudo! Seus cabelos eram negros e o sorriso gostoso fazia parte da sua marca registrada. Por ironia do destino, nasceu na mesma casa onde morreu. Era um casarão úmido, descascado e cheirando a retalhos de estopa. Isso porque o seu pai tinha uma fábrica de estopas bem ao lado, com uma máquina moendo e remoendo os retalhos de pano o dia inteiro, para o delírio da vizinhança, que não parava de reclamar do pó.
Na verdade, eles não conseguiam definir a fragrância que exalava. Nunca conheci um aroma tão gostoso e sensual na minha vida.   
Fábio era meloso e sabia falar “Buono giorno” com sotaque, para orgulho da família, que depositava nele a tradição de uma época em que ainda se reuniam ao redor de uma bella travessa de macarronada fervendo. E cada um contava um pouco das suas histórias, temperadas com orégano e  manjericão. Acho que foi assim que ele aprendeu a ser excessivamente romântico e a ter a sensualidade à flor da pele; tinha o cheiro delicioso do suor misturado com a poeira da estopa molhada. “Que menina bonita! Quando crescer, vou me casar com você. Prometo!”, repetia todas ás vezes que nos encontrávamos.
Pronto, foi o suficiente para eu acreditar... e pirar! Casar comigo?! Papo sério? Não acreditei, aliás, acreditei até demais, e alguma coisa mudou dentro de mim. Na minha cabecinha de ovo frito, fui mirabolando mil planos para conquistar “para sempre” o seu coração. Pensava nele o dia inteirinho e não conseguia fazer mais nada na vida, suspirando pelos cantos, totalmente avoada e sem sossego.
Era como se eu fosse a própria Susi e ele um príncipe encantado, do tipo “Ronnie Von”, saído de um Conto de Fadas. Na verdade, eu fugi do meu mundo para viajar de mala, cuia e maquiagem para o dele.
Não queria ser atrevida demais, nem muito sonsa, nem fácil, nem difícil.
Queria ser diferente e totalmente inesquecível. Aquela promessa saía como um uivo enlouquecido de um homem apaixonado, e precisava ser astuta para não assustá-lo. Não poderia puxar papo com ele como quem quisesse saber simplesmente o preço da carne moída; então, discretamente, pesquisava com os vizinhos mais antigos certas intimidades da sua vida. Talvez um dia ele não quisesse mais se casar comigo, mas com certeza, eu me casaria com ele, nem que ele fosse amarrado. Promessa é dívida. Quem mandou prometer? Azar dele! “Vithé, aquele rapaz meio sonso da fábrica de estopa... O mais feio de todos... Fábio o nome dele, né? Pois é. Ele namora???”.
Veja que categoria. Somente o meu diário secreto estava por dentro das minhas intenções pecaminosas, e foram quinze cadernos, que guardo até hoje num baú antigo.
Que ele era descendente de italianos, não era nenhuma novidade. Que
sua bisavó era uma índia da Ilha Anchieta, em Ubatuba, talvez... Que adorava física, química e matemática... uma surpresa! Que seria o meu primeiro namorado, um sonho. Que seria meu dono e soberano, um destino.Todas as tardes, ao fechar a fábrica, ele colocava uma pipa debaixo do braço e corria com a molecada pela rua, enquanto eu o filmava com os olhos,  decorando cada movimento do seu corpo, para que ficasse imortalizado na minha memória para sempre. Fábio era muito simples, alegre e cheio de vida! Sua voz era mansa, e ele contagiava a todos com a sua meiguice. Tão meigo que parecia uma moça!Até hoje o meu peito explode só de lembrar-me do seu  corpo robusto cor de jambo, rosto másculo, com aquela covinha traiçoeira que só aparecia de um lado quando ria para mim ou de mim.
Naquela rua, eles tinham o costume de se abraçar com intensidade quando se encontravam, deixando fluir palavras de carinho. Diziam várias vezes que se amavam, olhando nos olhos. Eu não conseguia compreender, mas achava lindo e queria fazer parte daquela imensa família de apaixonados. Depois gritavam uns com os outros, xingavam, se magoavam; choravam de raiva e faziam muito barulho. Era um escândalo. Logo se beijavam e choravam novamente, agora de alegria, e tudo “acabava em pizza”!
Nós pertencíamos a culturas diferentes. O meu pai era filho de português; econômico , trabalhava muito e falava pouco. Ele achava ridículo uma mulher que dava risada e falava alto, abominando toda aquela “melação”. Seu pai lhe beijava o tempo todo, prometia mundos e fundos, falava pra caramba e quando eu e meus filhos mais precisamos nos ignorou.Não entendo o motivo de tanto abandono, sendo que o meu pai, que era daquele jeito todo contido, ressabiado e sem graça foi quem nos amparou.
Eu sentia muito a sua falta, mas Fábio foi se tornando o meu melhor amigo e confidente. Amigo, entendeu? Havia um túnel  entre nós... Enquanto ele era um burguesinho da Mooca, eu era uma pobretona sem graça, sem dinheiro e sem teta! Minhas canelas eram finas como as de um periquito  empalhado, a boca era do tamanho de uma panela de pressão, usava alpargatas de brim e um quilo de grampos pregados na franja. As meninas rachavam a cara de tanto rir da minha breguice, mas ele insistia em me chamar de linda e querida para todo mundo ouvir.Fábio dizia, brincando:
— Você é mais você! Tem jeitinho de menina da roça! De Inhá Barbina!
— fazia chacota. — Você é a namoradinha do Chico Bento, minha filha. E   ninguém supera!
Eu sabia de todos os hábitos da sua família, inclusive dos primos e parentes de terceiro grau. Acenava quando sua tia Maria ia para a feira, quando voltava do bingo e todas ás vezes em que saía da quitanda. Era a Miss Simpatia do pedaço!
Quando se mudaram para os fundos da minha casa, fiz um buraquinho no canto do muro, sob medida para os meus olhos, que decoravam com precisão todo o seu dia. Depois, anotava os detalhes no diário secreto. O que eu não conseguia enxergar, ficava imaginando através do barulho da sua vida... O chiado da panela de pressão; as roupas esvoaçando no varal; as gargalhadas escandalosas da sua única irmã; o motor nervoso da mobilete  azul do seu irmão; e as óperas italianas que invadiam todos os tijolos da casa, indo ao encontro da minha alma aflita, tímida e silenciosa. A sua família era espontaneamente sedutora. Riam alto e gostoso; tudo era motivo para se reunirem num almoço de domingo. A música era tocada ao vivo por integrantes da escola de Samba Príncipe Negro e ia até de madrugada.
Seu pai resolvia tudo rapidamente, sempre depois de um bom vinho, e chamava a vizinhança para comemorar. O quê? “A vida, querido!” — dizia, dançando com a vassoura. Carros chegavam de repente, e os primos, tios, funcionários, amigos e inimigos se reuniam numa festa sem fim, enquanto  eu ficava espiando pelo bendito buraquinho do muro. Não fazia parte do seu mundo. Sabia que era brega e me sentia excluída. “Um dia vou ser a convidada de honra!” — roia a unha, de inveja. “Ah, se vou!”
Nunca havia entrado na sua casa, porque queria que ela ficasse apenas  na minha imaginação. Gostava de fantasiar sobre os móveis da sala, o assoalho, o lustre, o seu quarto... Fiquei sabendo que dormia numa suíte com uma banheira poderosa; que curtia folhear revista de mulher pelada deitado na cama; e que gostava de andar de cueca pelos cômodos, agarrando as  meninas que trabalhavam lá. Tinha um fogo no pitombo!

"Fábio miserável.Não sei porque o amo tanto.Acho que fez macumba com a minha calcinha pendurada no varal.Meus pais foram ao médico e estou aqui com minha gata Corina, aquela que levo pendurada no ombro feito um macaquinho amestrado. Hoje cedo ele  sentou-se ao meu lado com aquela carinha linda demais:
- Quer casar comigo? Tenho carro pra gente passear, uma casinha pra gente morar, muito amor pra te dar...- sorriu cantarolando.
- E um par de chifre pra me pregar.- terminei a estrofe com uma reboladinha.
E caímos pra trás, rindo como dois bobos”.

 

bottom of page