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Príncipes e Sapos

“Parece que estou renascendo para o mundo, criando asas e explodindo no infinito como uma estrela cadente. É como se fosse uma menininha com 12 anos de idade, redescobrindo o Amor. Não o primeiro e eterno, como eu jurei que fosse, nos meus diários de adolescente.Agora tenho dois filhos, um marido que amo e um sentimento muito
louco dentro de mim, que está tirando o sono, a fome e a própria dignidade. Ninguém me entenderia. Novamente, como há anos atrás, eu só tenho você, querido diário. Estou de mudança para São Paulo e até agora pouco, sonhava com este dia. Compramos os móveis, temos acasa, a família... mas nada do que me aguarda vale mais do que estou
sentindo agora. Nunca gostei de loiros. Nunca gostei de homens que soubessem ver horas, que bebessem cerveja estupidamente gelada  e brigassem pelo Timão. Só que a vida me presenteou com uma nova   surpresa e estou apaixonada por Ubatuba e por ele!”


O tempo estava passando rápido demais, e eu estava ficando cada vez mais confusa. Um era o príncipe que havia virado um sapo. E o outro, o sapo  que estava se transformando em príncipe... Eu massageava as suas costas com a ponta dos dedos, passava creme no seu rosto rústico e pintava as unhas das mãos com um esmalte transparente. “Não se mexa, deputado!
Hoje, você é meu convidado especial.” — dizia, servindo-lhe um suco gelado.
E perguntava-lhe: “Quer que eu depile o seu peito com cera quente, meu rei?”
Serginho me fazia feliz. Fábio só me fazia chorar. Quando vinha de São Paulo, estava um caco. Algumas vezes, os meninos ficavam com a minha mãe; então, Serginho me ligava no celular, dizendo que estava me esperando na praia. Eu não conseguia dizer uma palavra, e ele me abraçava forte, sorrindo: “Só quero saber de uma coisa: ele não te machucou, né?”
Então, negava com a cabeça. Pedia a velha cerveja gelada de sempre, e conversávamos sobre nós até de madrugada. Depois, levava-me no cano da sua bicicleta, e eu mentia para os meus pais, dizendo que o trânsito estava engarrafado na Via Dutra.
Faltávamos no serviço para ficar juntos. Só não dormíamos juntos. Eu não queria de jeito nenhum. Ele já tinha o meu coração; se tivesse o meu corpo, não estaria mais inteira para o meu marido. Marido? Qual dos dois era o meu marido?
Em São Paulo, eu não costumava atender as suas ligações, porque não queria misturar os relacionamentos. Com Fábio, era diferente. Não tinha diálogo.
Não tinha nada. Ele ficava trancado cada hora num quarto, fumando seu “Derby suave”. Uma vez, mexeu na minha bolsa para procurar moedinhas para o iogurte de morango e achou uma foto colorida de Serginho na praia da Barra Seca, de sunguinha  preta e óculos escuros, do tipo galã de filme pornô.
— É um amigo de serviço. — comentei, engasgada. A minha vontade era de lhe pregar a verdade na cara, gritando: “Volte logo para o mundo real e coloque a cabeça no lugar, antes que eu o deixe sozinho, com todas as suas minhocas e um belo par de chifres!”
— Ele não é um amigo. É o seu namorado. — afirmou.
Levantou-se do sofá e nunca mais olhou nos meus olhos. A situação estava ficando brava! Então, ele começou a assassinar o nosso casamento e me arrancou do nosso mundo de açúcar. O fascínio que eu exercia sobre ele já não existia mais, e ele passou a me ignorar por completo! “Eu não conheço mais você.” — dizia, virando as costas para mim. No dia 21 de outubro de 1996, quando estávamos fazendo aniversário de casamento, Serginho me levou para a sua casa, porque chovia muito e eu precisava me secar. Fechou a porta com o trinco e me atirou na sua cama,  afoito. Puxou a minha saia com força, e eu fungava, chorando baixinho.
— O que foi que aconteceu? – largou-me.
— Eu não quero. Eu sou casada e hoje tá fazendo sete anos. Por favor, me larga!
Então, ele se desculpou, ajudando-me a lavar o rosto na pia. Estava envergonhada e com medo do que estava fazendo com a minha vida. Serginho me disse: “Resolva a sua situação e, depois, você me procura. Tá tudo bem. Eu também não quero assim. Você é linda, até chorando.”
Não o procurei mais. Sumi por dias. Pedi para trabalhar em outro setor, mas ele me ligava, inventando nomes diferentes para que eu atendesse.
Passavam a ligação para mim, dizendo: “Silmara, o secretário da Saúde está no telefone querendo falar com você”. Eu atendia: “Pois não, Sr. Senhor!?”. E ele morria de rir do outro lado... Achava a maior graça da sua tremenda “cara-de-pau”. Marcamos um encontro após uma semana de desencontros e dançamos até de madrugada.
— Cuidado com os malandros, Silmara!
— Eu só conheço um: você!
— Eu quero que você seja minha companheira, minha mulher, minha amante...
— E sua prostituta.
— Também. Desde que seja somente minha!
— Para ser tudo isso, eu preciso fazer um curso intensivo no exterior!
Num passeio de bicicleta, em uma manhã, levou-me para conhecer a Praia Vermelha do Norte. Eu usava um vestidinho florido. Ele me pegou no colo, e me fez boiar. Que vidão! Quando abria os olhos, enxergava as gaivotas sobrevoando o mar, enquanto sentia a água gelada tocar o meu corpo, suavemente.
— Por você eu enfrento qualquer coisa! – murmurava.
— Até o meu marido?
– Vou embora com você. — dizia. — Não quero ser pretensioso, mas a gente vai casar. Você acredita em mim? Chega para o Fábio e fala que você está gostando de outro homem. — rodava-me lentamente, em cima da água.
— Que outro? O Fábio me acompanhou durante 17 anos da minha vida, me deu dois filhos, casa e comida e uma família de verdade. Então, não me peça isso! Me dê alegria, e já está de bom tamanho. Nisso, soltou-me com tudo, “fulo” da vida, e quase me afoguei.
— Que ódio que sinto! Mas é ódio de mim mesmo! Eu caí na sua lábia!
— Você é muito mimado, Serginho. O que você pensou, hein? Que eu era uma daquelas idiotas que você comia e largava o osso na praia? Eu sou casada e não posso ficar com você,bebezinho da mamãe.
— Tem coragem de dizer isso na minha cara? Falsa! Traíra! Erva daninha!
— Digo na cara e pelas costas, também. É a mais pura verdade!
Nem nos olhamos mais. Fomos embora, sem pronunciar uma palavra...
Até o próximo passeio na Barra Seca, no dia seguinte. Deitamos na areia da praia e nos beijamos na boca. Era um clima de despedida brabo!
— Obrigada por tudo! Você foi muito “bacana” comigo. Ficou do meu lado quando ri e também quando chorei. Quero que seja muito feliz! Mesmo que eu fique com ele e você com ela. A vida é feita de escolhas, e eu optei por continuar casada.
Apanhei minha mochila e saí andando pela areia. Ele gritava o meu nome:
— Volta aqui! Você vai se arrepender... Tomara que ele te dê uma gravata e te cozinhe viva na churrasqueira! Vocês se merecem!
À noite, arrumei tudo o que tinha e fui para São Paulo, sozinha. Fiquei dez dias por lá. Fiz de tudo para recomeçar com Fábio, mas ele não colaborava.
Saco! Parecia um andróide alucinado: mexia nas gavetas e desmontava os móveis. Chamei para se deitar comigo, pois queria fazer amor com ele: “Fábio, é você que amo. Fica comigo! Ei, eu estou aqui!” — tirei a roupa. Levantou-se rápido, circulando no mesmo lugar como um armário de rodinhas. Eu disse: “Me ajuda a nos ajudar, meu amor! Olha pra mim... Eu sou a Silmara.”
Foram dez dias de solidão naquela casa enorme; folheava revistas velhas e tirava fotos dos amiguinhos da rua para fazer o tempo passar. Quando voltei para Ubatuba, estava realmente disposta a esquecer aquele caso extraconjugal.
Aquilo tudo me soava como um melodrama mexicano. Precisava dar um basta. Até que encontrei o boneco “dando sopa” na esquina de casa.
Ele assobiou para mim: “Ei, vem cá! Que saudades! Nem parece que estou olhando pra você. Vamos dar uma volta? Precisamos conversar.”
Pronto, sorri amarelo! Foi o suficiente para caminharmos pelas areias da praia do Perequê-Açu, chupando sorvete de flocos e de mãos dadas!
— Eu não fico sem você. — ele dizia. — Não sei o que aconteceu comigo. Acho que é macumba. Você deve ter me dado pra beber um chá de calcinha amanhecida...
— Você me devolveu a alegria de viver!
Não sei como, mas ele ainda namorava. Eu não me via como “a outra” ou “a rival”. Não tinha muita noção de tudo o que estava acontecendo e queria apenas me divertir. Com ele eu podia rir alto, falar besteira, dançar, tomar sol na praia... Com ele. Entendeu? Sem ele, nada feito, porque me proibia. Eu estava me libertando e fazendo coisas que nunca havia feito antes. Então,
Serginho também começou a perder o controle da situação, porque, se ele estivesse com a namorada, eu saía do mesmo jeito. E ele tinha um “treco”, virando-se do avesso só para me encontrar. Ia atrás. Ficava ligando no meu celular como um obcecado, querendo que voltasse para casa. Mesmo com ela do lado, em pleno almoço de domingo: “Eu fico na sua, porque sou louco por você! Tenho que desligar.” — cochichava.
Eu não o amava. Não amava mais ninguém. Estava apaixonada pela vida, como nunca havia me apaixonado antes. Comprava roupas novas para mim, fazia as unhas e me sentia feliz.
Naquela época, conheci a Rosa, que trabalhava num outro departamento e estava se separando do marido. Então, começamos a sair juntas, com ele sempre na cola. À noite eu ia dormir na casa dela, e adivinha quem aparecia do nada, escondido na capa do “Batman”? O pavão misterioso da meia noite.
O loiro aguado. Então, jogávamos buraco, dominó, alugávamos filme e batíamos papo até
clarear o dia. Os meninos também iam comigo, e dormíamos todos amontoados
no chão da sala. Eles adoravam Serginho, porque ele topava qualquer brincadeira. Desde dançar na boquinha da garrafa até gingar capoeira na grama do quintal da Rosa.
— Você ainda quer transar comigo? – perguntei.
— Quero tudo com você! Inclusive, transar.
E transamos. Doeu muito! Parecia que era a minha primeira vez, porque eu não tinha mais uma vida sexual há muito tempo. Chorei muito. Chorei alto. Chorei por horas, até dormir. E como dormi gostoso! Não porque havíamos transado, mas porque eu havia conseguido dormir... em paz... ao lado de alguém que me abraçava em forma de concha, sem me bater. Sem me judiar. Quando abria os olhos, assustada, dizia no meu ouvido: “Tá tudo bem. Dorme, querida!”
Achei que, após aquela noite, não me procuraria mais. Então, antes que me desse um furo daqueles, eu sumi por dias. Foi me procurar na minha casa, e levamos os meninos na praia da Barra Seca para passar o dia, com direito a bóia de isopor, máquina fotográfica, baldinho de areia, lanche de presunto... Eles riam com as suas palhaçadas, e parecíamos uma família
feliz. E “a outra”? Eu era “a outra”, e não tinha percebido. Acreditava que,
quando quisesse, conseguiria ir embora, numa boa.
— Você vai pra São Paulo com ele?
— Você já sabe. Aliás, você já sabia.
— Nada mudou pra você durante esse tempo todo que estamos juntos?
Eu não quero que vá pra São Paulo... Nunca mais! Nem de final de semana! Não quero que durma com ele! Não quero mais que me fale sobre ele!
Chega! Quero que fique comigo!
Que bobagem! Na sexta-feira à noite, eu já estava com a mochila nas costas e os meninos no colo. Passava a semana com Fábio, “fritando” na cama.
Pensava: “E agora, meu Deus? O que eu faço? Ficar aqui é um ‘porre’!”
Eu nunca havia me envolvido com alguém, pois sabia que, depois que conhecesse os “prazeres” da vida, não ficaria mais com Fábio. É como se fartar com uma feijoada suculenta para depois ter que encarar uma alface murcha. O problema não era Fábio ou Serginho; era o que eles me proporcionavam.
Doença ou saúde? Tristeza ou alegria? Morte ou vida? Eu merecia ser a Silmara em algum lugar daquela história, mesmo que fosse com quase 30 anos de idade.
São Paulo não me agradava mais. Estava me enjoando de pizza de presunto e ovo. Queria peixe frito, caldeirada, tainha na brasa! De repente, do nada, arrumava minha mochila e ia embora para Ubatuba, sem avisar ninguém.
Para mim, a decoração nova não tinha mais graça nenhuma, e ficar sozinha pelos cantos daquele casarão era uma tortura que eu não aceitava mais. “Tô fora!” — pensava.
Quando descia a serra, o meu coração voltava a bater no ritmo do hino de Ubatuba, e que felicidade sentia! Serginho já me esperava em qualquer rua da cidade, e meia-noite era dia para nós. No Dia da Mulher, presenteou-me com um espartilho vermelho e me levou para dormir numa pousada. Eu nunca havia ficado com um outro homem com a luz acesa, sem roupa ou
no chuveiro. Que vergonha!
Parecia uma donzela ridícula e, pasmem, já era mãe de dois filhos pequenos. Serginho dizia: “O sexo é vida! A mulher precisa sentir prazer! Precisa sentir tesão!”
Eu cobria os olhos com o lençol, disfarçando. Não falava essas coisas.
Fazíamos parte de mundos opostos e extremos. Eu lhe mostrei o meu mundo de açúcar, e ele me apresentou o seu, feito de pó. Aliás, não me lembro direito quando foi a primeira vez que cheirou um prato de cocaína na minha frente, improvisando o canudo com uma nota de um real. Sua boca ficava repuxando, toda torta, e aquilo tudo não me dizia nada, porque ainda assim
era “bacana” comigo. Cuidava de mim e me fazia rir. Mesmo sendo “careta”, era como se estivesse drogada, também, e conseguia fugir da minha realidade porque estava feliz.
Viajava com ele somente  nas idéias, e curtir a vida era um tremendo barato!
Serginho sumia por dias, e diziam que estava se drogando, entocado em algum lugar. Muitas vezes me deixou na praia, enquanto subia o morro, atrás de algum traficante conhecido. Era alcoólatra e drogado. Mas, para mim, era apenas um rapaz risonho, falante e cheio de energia, porque conseguia virar as noites, sempre agitado. Que boba, era efeito da droga e eu nem sabia!
Quando me enchia das suas paranóias, arrumava a mochila e viajava para São Paulo. Lá, eu tinha o aconchego da “minha família”, a certeza de ter o “meu marido”, e me acabava de tanto comer pizza com presunto e ovo, de novo! Só que tudo era de mentira, e Fábio se trancava no quarto antes mesmo de anoitecer. O cheiro da estopa moída já não me excitava como
antes. Os móveis eram mudos e os cômodos, sem vida.
Procurava por Fábio e ainda o desejava, só que ele não existia mais. Se por um instante me olhasse diferente, se sentisse nele um sopro de vida, eu teria largado tudo para recomeçar; mas Fábio estava evaporando no ar, e raramente nos víamos. Então, fui desistindo também, e nos divorciamos, sem dizer nada um ao outro. Passava por mim e era como se não me visse,
esquentando o café e acendendo o “Derby suave”, numa boa. Eu ainda tinha um compromisso com ele, e fui passar o Natal e o ano novo na nossa casa, em São Paulo. Sua família tinha viajado para um sítio, no interior, e então assei um frango com farofa, convidando alguns amigos para ficar com a gente. Eram as meninas que trabalhavam na casa da minha sogra e alguns rapazes da fábrica de estopa. Antes da meia-noite, ele já estava trancado no
quarto, e detalhe: não abria a porta nem para a Julia Roberts!
No outro dia, cedo, comecei a ter febre altíssima, dores por todo o corpo e diarréia fulminante. Não conseguia mais andar e urinava na cama. Em pouco tempo, emagreci quase dez quilos, e os meus cabelos caíram. A minha boca estava cheia de feridas, e não conseguia engolir nada. Fábio apenas me observava, enquanto lhe implorava por ajuda: “Chama alguém! Eu vou
morrer!”. E ele sorria, trancando-se no outro quarto.
Nisso, a vizinha da frente achou estranho o meu desaparecimento repentino.
Resolveu fazer uma visita e, quando me encontrou caída, no assoalho, pediu para que avisassem a minha família. Eu não me lembro de nada. Só sei que meus pais, junto com a minha prima Rose, foram me buscar no mesmo dia, e dei entrada na Santa Casa de Ubatuba, desmaiada, numa cadeira de rodas. Estava com manchas por todo o corpo, caroços enormes
no pescoço e pesando apenas 49 quilos. Eu já estava contaminada com o vírus da Aids e não sabia. Ninguém sabia. Nenhum médico me pediu exame de anti-HIV, talvez por eu ser “uma moça bonita e de boa família”.
Apesar da febre que me consumia, fui liberada para ir para casa, e lá minha mãe cuidou de mim como se estivesse com uma gripe forte.
Serginho foi o primeiro a ir me visitar. Não conseguia nem sentar na cama, de tão fraca. Passei a ser alimentada por meio de um canudo, e Rose me carregava no colo para que pudesse me dar um banho. A claridade fazia com que os meus olhos doessem; por isso, o meu quarto sempre ficava com a janela fechada. Sentia muita dificuldade para raciocinar e falava um monte de baboseiras. Demorei para voltar a andar, ainda capengando pelos cômodos com uma bengala de madeira. Somente após dois longos meses me recuperei de verdade, e já “saçaricava”
com Serginho pelos cantos da cidade. Dançávamos no Tom Bar,comíamos lanches no carrinho da avenida e pipoca na Pracinha da Matriz.
De repente, ele dizia: “Vou até ali e volto logo. Me espera.” — e ia cheirar em
algum buraco da cidade.
Pronto! Eram horas de agonia! Quando voltava, era outra pessoa. Não tinha sossego e se irritava com muita facilidade. Qualquer coisa era motivo para dar um chilique daqueles, achando que eu estava de paquera com algum outro homem. Então, ficou com receio de me deixar sozinha na madrugada e passou a me levar junto . Conheci um monte de gente estranha, que dividia o mesmo prato de cocaína com ele. Eu ficava quieta, ouvindo
aquele papo “furado”, que mais parecia o discurso do próprio Presidente da República. Falavam um monte de baboseiras, repuxando a cara num estrimilique manso! Depois que cheirava até cair o buraco do nariz, abraçava-me todo ofegante, e dormíamos coladinhos num canto do barraco, enquanto eu ficava me questionando o que estaria fazendo naquele “mocó” peçonhento.
Nunca me obrigaram a nada, e ele sempre dizia que eu era “careta”. Eram homens comuns e mulheres sonsas, com cara de manga chupada, sendo que algumas eram mães de família. A criançada brincava no chão, como se nada de estranho estivesse acontecendo ao redor daquele prato de farinha alucinante.Que dó!
Numa manhã de agosto, enquanto dormíamos no seu apartamento, o porteiro tocou a campainha, sussurrando algo estranho, do tipo: “A sua namorada faleceu.”. Como assim??? Ela havia sido internada há algumas semanas atrás, e foi tudo muito rápido. Meu Deus, ele tinha uma namorada, mas nos comportávamos como se não tivesse! Será que foi crueldade?
Safadeza? Egoísmo? Apanhei minhas roupas, que estavam jogadas pelo tapete da sala, e chorei muito! Não falamos nada. Deixou-me na esquina de casa e foi para o velório, em silêncio. Acho que a cidade de Ubatuba sabia que tínhamos um caso. Eu era a amante. Nossa! Não tinha me caído a ficha... Mas eu não o amava, e logo mudaria para São Paulo, com os meninos...
Ele apenas me fazia feliz, e com certeza lhe devolveria depois! Mas não houve o depois. Ela estava morta e o assunto era aquela fatalidade. Mas nada mudou entre nós. Na mesma noite, já estávamos dormindo juntos e, quando chorava pela perda da sua namorada, eu o confortava, porque muitas vezes também chorava de saudades do meu marido e ele fazia o mesmo. Que loucura!
Então, ele começou a me pressionar: “Larga dele! Ou eu ou ele!”.
Brigávamos cada vez mais, e ele cheirava como um alucinado. Aquilo começou a me aborrecer, e eu o deixava largado no chão, com o seu prato de farinha “fubenga”:
“Esta farinha tá com o prazo de validade vencido, seu otário! Você não precisa desta ‘inhaca’ pra ser feliz. Que raiva de você! Adeus! Chega!”Mas essa situação durava, apenas, até o dia seguinte, em que ia me buscar em casa. Passávamos os finais de semana com os meninos, e tudo era bem escancarado, para quem quisesse ver e ouvir. Ele queria que o assumisse como namorado, porém eu ainda tinha esperança que Fábio melhorasse. Os meses foram passando, e nada mais nos impedia de curtir Ubatuba numa boa. Os meninos adoravam Serginho; os meus pais, no entanto, detestavam!
Do fundo do coração. “Ele tem cara de ‘pinguço’.” — diziam.
Mal sabiam que ele também se drogava. E coitada de mim, a idiota, que “engolia cada sapo cabeludo” por causa dele! Quando não tinha pinga, tomava álcool puro. Todo o seu dinheiro era torrado em bebida e cocaína.
Novembro estava chegando, o famoso mês do meu aniversário.
— Sempre morre alguém conhecido. – eu dizia.
— Bobagem! Este ano vai ser diferente, e você nunca vai se esquecer desta data. Final de ano estava chegando, e teria que escolher com quem passaria o Réveillon. Serginho foi categórico: “Não tem o que pensar, Silmara. Você e os meninos vão passar aqui em Ubatuba, comigo. Entendeu? A gente vai começar o próximo ano feliz, como uma família de verdade. Com
Papai Noel e tudo. Eu me visto. Adoro essas coisas!”
Uma semana antes do meu aniversário, eu precisei ir para São Paulo visitar Fábio. O meu sogro havia gastado uma fortuna para reformar a nossa casa e queria que me mudasse logo. Eu “cozinhava o galo”, arrumando mil desculpas. Serginho ficou “fulo”, mas eu fui, mesmo assim. Lá eu era nora, esposa, cunhada, tia, sobrinha e até patroa. Eu era alguém importante naquela
família estruturada e não podia falhar com eles, como se não fossem importantes para mim.
Você acha que fui safada? Posso responder que não fui. Eu estava confusa, acredite. Queria continuar casada, porém Fábio não existia mais. Era apenas uma aparição que se arrastava, muda e silenciosamente, pelos cômodos do seu próprio mundo. E Serginho? Eu não gostava dele. Sentia raiva de seu jeito desleixado. Bebia todas no boteco da esquina e estava
sempre , cheio de dívidas e empréstimos para pagar. Só que não conseguia
mais viver sem ele, porque me fazia feliz e muito mais mulher: “No começo
do ano, eu venho pra cá com os meninos.” — prometi.
A minha cabeça “dava um nó”! O meu coração estava trincado no meio!
A minha alma estava opaca! E a minha promessa de fidelidade eterna a Fábio? Meus Deus, que situação! Acredito que fui muito mais que fiel; fui leal. Será? O que você acha? Os familiares de Fábio diziam: “Ele está piorando sem você aqui. Antes você vinha sempre; de uns tempos pra cá, você sumiu. Ele fica sozinho nesta casa e não conversa com ninguém. Sente falta
dos meninos. Volta logo!”
Eles tinham razão. Aquele triângulo amoroso estava no limite, e eu precisaria dar um basta naquela situação. Então, pedi que ajeitassem tudo, porque após o meu aniversário me mudaria com os meninos para São Paulo. Fui até o meu quarto, pulei na cama e chorei até me afogar com as próprias lágrimas. Decidi que não contaria nada para Serginho; comemoraríamos
juntos e depois partiria, sem me despedir. Com certeza, não nos veríamos mais, e seria melhor assim, porque tinha um compromisso de honra com Fábio e não poderia me esquecer disso. Estava pondo tudo a perder por um capricho bobo.
Fui falar com Fábio. Ele estava deitado no sofá, fumando o seu Derby, esentei-me do seu lado, séria:
— Fábio, eu estou indo pra Ubatuba, mas volto com os meninos, de vez. Não é justo deixar você sozinho. — murmurei no seu ouvido. — Agora é pra valer. Juro!
— Você não vai voltar mais, Silmara. Sua vida agora é outra... com outro.— sussurrou.
Não acreditei no que estava me dizendo. Ele não conversava, não compreendia, não percebia... Como não??? Nós nos encaramos por um instante, e senti que Fábio sabia de tudo. Ou não? Será que estava piorando por causa disso? Será que me ignorava porque havia descoberto que eu o traía? Ou não? Era tão alheio... Tão distante... Tão louco... Mas tão sensível!
Não usávamos as palavras, porque não acreditávamos nelas. Dizíamos que o importante eram os atos. Muito do que se falava, não se fazia. E muito do que se fazia, não se falava. Dentro do seu mundo de açúcar, ele conseguiu captar todas as minhas mensagens, em silêncio. Era o meu corpo que falava, mesmo mudo.
— Fábio, você me surpreende cada vez mais! E eu sempre vou te amar!
Você é o melhor de mim! – e as lágrimas escorriam, sem eu querer.
Ajeitei toda a bagagem, como sempre fazia, e quando fui lhe beijar a boca, desviou os lábios, beijando-me a testa:
— Eu nunca vou me esquecer de você. Obrigado por tudo! Tudo mesmo! Um dia a gente vai achar graça disso tudo, lembra?
Seus olhos se encheram d’água, mas eu não conseguia compreender tamanha emoção. Era a nossa despedida, mas eu nem percebi. Nisso, comecei a chorar, sem entender nada. Ele segurou a minha mão, sorrindo:
— Não chora! Você vai ser muito feliz!
— Fábio, eu voltarei. Eu quero ficar com você... Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Eu sou a sua mulher. Sua, porque o meu coração é somente seu.
— Você não vai voltar mais. Siga o seu caminho. E não se esqueça de mim.
Enxugamos as lágrimas, e eu lhe acenei do carro. Foi o último momento que passamos juntos. Murmurei: “Até um dia, meu amor!”
Na véspera do meu aniversário de 28 anos, domingo, nove horas da noite, ele teve uma parada cardíaca fulminante e morreu sozinho, no chão da nossa cozinha, deixando guardada, embaixo do travesseiro, uma foto dos meninos na praia. Meus pais, Serginho, eu e os meninos comemorávamos em Ubatuba, cantando “parabéns”, quando uma luz forte passou por nós, e
o meu coração ficou apertadinho, querendo chorar. Nisso o telefone tocou,
e a minha vizinha de São Paulo anunciou, em prantos, que Fábio estava
morto.Foi como se tivesse perdido uma parte de mim... Eu não conseguia acreditar,
e todos nós nos abraçamos, num momento de muita dor. Arrumei a
minha mochila e pedi para meu pai que me acompanhasse no velório. Eu disse: “Serginho, vem comigo! Eu preciso de você do meu lado, senão morro também. Por favor! Sei que não é certo, mas você é o meu melhor amigo.” Chegamos os três juntos ao velório da Quarta Parada, em São Paulo. Às cinco horas da tarde, antes de fechar o caixão, beijei a boca dele, tão minha,
pela última vez. Estava perdendo-o definitivamente. Murmurei: “Fábio, eu
nunca me esquecerei de você, meu grande amor!”
Serginho também chorava, quietinho no canto da porta, e talvez ninguém compreendesse aquela história triste, sem um final feliz. Nunca mais quis voltar à Mooca; ela não existia mais para mim. Fiquei viúva e completamente órfã de carinho. Os pais de Fábio demoraram para telefonar, nem para saber dos meninos. Fiquei muito triste, porque senti que eles os haviam
desamparado, mais uma vez. Reiniciei o meu tratamento psiquiátrico, agora com Dra. Elisa Arruda e também fazia terapia três vezes por semana.
Todas as noites tinha pesadelos com Fábio e, num deles, ele corria desesperado
pelas ruas de Ubatuba, gritando pelo meu nome. Acordava suando
frio, com a certeza de que estava ali do lado, sussurrando no meu ouvido:
Com Fábio, conheci a emoção, a inocência e a fantasia. Ainda faltava conhecer a razão, a malícia e a realidade. E, num piscar de olhos, eu desencantei de um mundo para renascer em outro completamente estranho para mim. Precisava de um novo amor, para conseguir superar a sua perda, e resolvi “viver” intensamente, só para não morrer junto com ele.
Essa história de amor me fez crescer como pessoa, contribuindo para que eu assumisse uma nova postura diante das dificuldades da vida. Com o tempo, aprendi a reconhecer as pessoas por meio da linguagem corporal, como a expressão dos olhos, o toque das mãos, a serenidade ou a agitação da alma... Comecei a escrever o nosso livro e, para encerrar esse ciclo da
minha vida, lancei “O louco da rua encantada”, na XVI Bienal Internacional do Livro, em São Paulo. Foi um sucesso! Tenho certeza que estava do meu lado, aplaudindo-me de pé, como havia me prometido uma vez.

Das lembranças que eu trago na vida, você é a saudades que eu gosto de ter.Só assim sinto você bem mais perto de mim...outra vez! – Roberto Carlos.


 

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