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 O juramento

O  bairro da Mooca parecia pequeno demais para mim e para Fábio. Escrevíamos nossos nomes nos muros e deixávamos tatuadas as nossas iniciais por todos os cantos onde nos encontrávamos. Com certeza, eu fui a pessoa que mais o amou neste mundo. Despertou em mim a paixão pela vida, incentivando-me a lutar pelos meus objetivos, sempre de cabeça erguida. Fábio me ensinou a amar as pessoas de dentro para fora, sem limites ou preconceitos. Foi com ele que aprendi a ter outros valores, como a generosidade, a humildade e a grandeza interior. Suas palavras eram confusas e sem lógica, porém, eu o compreendia com os olhos. E eles não mentiam nunca, porque refletiam a beleza da sua alma.
O caminhão ia buscar as nossas coisas no dia seguinte, e Rose Carioca, minha  querida amiga chamou-me no muro:
— Vai se despedir dele, Silmara! Um grande amor a gente não deixa assim.
Ele tá doente, e é por sua causa. Disse que nada mais nesta vida tem valor!
Quando entrei no quartinho, estava no escuro.
— Fábio, eu estou indo embora, e vim aqui só pra me despedir de você.
Não vai me pedir para ficar? Não serei feliz longe da Mooca, das canções de Raul Seixas, de Bezerra da Silva e de você.
— As pessoas falam que sou louco...Os médicos dizem que tenho uma doença incurável.A minha cabeça é podre!
— Eles não te conhecem de verdade.Você é um grande homem...
— E você se transformou numa grande mulher!
— Mas uma mulher não é completa sem a sua essência. Você é o que eu tenho de mais bonito nesta vida, porque conseguiu me preencher com a continuação de seu corpo, que pulsa em outro corpo... Aqui, no meu ventre. Fábio, é o teu filho que te pede; fica com a gente, vai! – e fomos nos aproximando lentamente, numa valsa sem música, dispostos a recomeçar, pois  tínhamos conosco um outro guerreiro em busca de novas conquistas. – Eu estou grávida! Deus nos abençoou, e o Raphael está chegando. Olha só que coisa boa!
— Os médicos disseram que se tivesse um filho ele ia nascer com problema...
— Não tem como saber, Fábio. Vamos confiar! Deus nunca nos desamparou. Se a gente está passando por isso, deve ter um motivo. Um dia acharemos graça disso tudo, lembra? Fica com a gente... Seremos muito felizes!
— É verdade. Eu vou amar o Raphael de qualquer jeito!
Ele começou a gritar de alegria e abriu a janela do quarto, para que a luz da vida pudesse entrar. Todo mundo achou que a gente tinha enlouquecido. Ele parecia uma outra pessoa. As vizinhas das casas ao lado colocaram a cabeça para fora das janelas, querendo saber o que se passava:
— Eu vou ser pai. — ria. — Silmara, você quer ser minha mulher?
— Você acha que eu vou perder essa boquinha?Até que enfim, hein, Bello!
Nos beijamos demoradamente, como deve ser o final feliz de uma linda história de amor; mas, na verdade, aquele beijo selava apenas um recomeço. Ele foi comigo até em casa, dando a boa-nova para toda a família:
— Não acredito! É isso mesmo, Silmara? — perguntou a minha mãe.
— A senhora sabe que é. — abracei-a, sussurrando no seu ouvido: — Me perdoa!
O meu pai ignorou, como se não fosse com ele. Continuou a encaixotar os móveis, emudecido. Imagino o quanto sofreu naquele momento! Talvez se fosse um filho meu que tivesse escolhido um caminho tão cheio de pedregulhos, também ficaria triste daquela maneira. Só não o abandonaria com os lobos famintos da madrugada! Eles adiaram a mudança por causa do casamento, e os últimos preparativos foram resolvidos em duas semanas.
Eu sabia que, depois que os meus pais fossem embora, tudo ficaria muito mais difícil para mim.
Na manhã do meu casamento, fui fazer as unhas na vizinha do lado, sozinha. Arrumei o cabelo, quase muda. Depois, passei rapidamente o meu vestido e fui até a casa dele, para ajudá-lo a se vestir. Fábio nem conversou comigo. Inventou que precisava comprar cigarro e sumiu por mais de uma hora. Fomos até o cartório em carros separados, e ele tremia tanto que mal  conseguia assinar o próprio nome.

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Nos casamos dentro da fábrica, no meio dos fardos de estopa. Era o dia 21 de outubro de 1989, uma manhã de sábado. Durante toda a cerimônia pouco nos vimos. Ele estava esquisito e foi embora logo depois de cortar o bolo. Então, chorei muito no banheiro, borrando toda a maquiagem. O que estaria acontecendo novamente? A nossa vida era cheia de más surpresas
... Acho que toda mulher cultiva dentro de si um sonho secreto, e o meu era exatamente o Grande Dia, aquele que celebraríamos o nosso amor diante das pessoas queridas. Mas para mim, o casamento foi triste e com gosto de desilusão. No final do dia, quando já estava cansada de rodopiar pelo salão sozinha, atravessei a rua com o meu mini vestido de noiva e fui
direto para a casa, dormir.Passei a semana normalmente com os meus pais, e nem tocamos mais
no assunto. Um dia antes da mudança, ele foi me buscar para montarmos a cama de casal no seu quarto. Até que um dos apartamentos do seu pai fosse desocupado, ficaríamos morando com a sua família. Ajeitamos as caixas de presentes num canto e ficamos nos observando, sorrindo um para o outro. Ganhamos desde um simples pano de prato até um fogão de seis
bocas. O meu enxoval era um luxo e tinha de tudo, porque comecei a comprar as coisinhas logo que conheci Fábio. Ele estava só de cueca e, todas as vezes em que precisava se levantar, enrolava a toalha de banho na cintura, na maior dificuldade do mundo. “Não vai ficar me espionando, hein!? Olha o respeito”, disse.
Eram quase dez horas da noite, e a campainha tocou de um jeito muito tímido. Pude ouvir a voz rouca do meu pai, querendo se despedir de mim. Alguém bateu na porta do quarto, mas eu não abri, fingindo que dormia. Não conseguiria ficar ali, se abraçasse o meu pai naquele momento. Então, cobri a cabeça com o cobertor, chorando em silêncio: “Meus Deus, dê-me forças!
É o que escolhi para mim.” Uma garoa fina começou a cair, e pude ouvir os passos do meu pai indo embora para bem longe. Quase morri naquele instante! Era a minha vida que estava partindo, deixando no seu lugar um cheiro de morte morrida. Durante a madrugada, abri a porta da casa de Fábio, devagarzinho, e pulei o muro. Fiquei ali observando os meus pais dormirem, pelo vão da veneziana. Do lado de fora, abracei a janela do quarto, a parede, a pilastra...
Foram tantos anos juntos naquela casa... O cheirinho gostoso do feijão com bacon, o bolo de chocolate, o rocambole de carne, o cuscuz de sardinha quentinho, as risadas da minha mãe com Cecília, Eliane Vera e a Valéria,a tosse seca do meu pai, as músicas que tocavam no meu radinho de pilha... Eu estava me libertando daquele mundo para me aprisionar em outro.
Chorei desesperadamente, sem que ninguém me visse naquela escuridão.E murmurei: “Adeus, meus queridos! Desculpem por tudo! Um dia vocês vão  entender...”
Quando acordei, na manhã seguinte, eles já haviam partido, junto com tudo o que tínhamos de mais valor: nós mesmos. Fiz uma trança bem bonita e desci para tomar o café da manhã com a minha nova família. Finalmente, os meus planos mirabolantes de me casar com Fábio haviam dado certo e eu deveria estar feliz, mas aquela situação era um presente de grego!
Nos primeiros meses, foi uma gostosura! O pai de Fábio era muito divertido e contava muitas histórias engraçadas. Eu e o meu barrigão éramos presença marcante nos churrascos de domingo, e nunca mais precisei observar a festa pelo buraquinho do muro. Mas não demorou muito para Fábio mudar de estilo e voltar a ter outros surtos.Ele me deixava cada vez mais sozinha. Sumia pelas ruas da Mooca, voltando após dias, como se nada tivesse acontecido. Comecei a beber: vinho, vinagre, xarope, perfume... Qualquer coisa que me deixasse caída no
assoalho do nosso apartamento durante horas. Depois, tomava um banho quente e me entupia de remédios. Haldol! Diazepan! Akineton! Queria colo, queria carinho, queria minha mãe, e sentia falta até das broncas do meu pai! Ligava para ela para matar a saudade e sempre dizia que estava tudo bem. Muitas vezes, pensei em me jogar da janela do apartamento. Como
não tinha coragem, atirava tudo para baixo: suas roupas, seus tênis, suas fotos, os remédios... Ele nem se mexia, olhando para o teto e rindo com as cortinas. “Olha pra mim! Eu existo! Eu preciso existir pra você, senão morro!”  — gritava.
Passei a ser uma mulher deprimida e cheia de neuroses. Quando o Raphael nasceu, Fábio passou a não dormir mais em casa. O choro do bebê o deixava nervoso. Então, minha mãe resolveu levar o menino para ser criado por eles, em Ubatuba. Ficamos nós dois no meio de muita loucura! Nas noites de solidão, eu contava os pregos dos móveis para tentar dormir.
Nas festas de final de ano, tomava um monte de tranqüilizantes, apagando de vez. Não queria ouvir a queima de fogos na hora da virada, porque não tinha ninguém para desejar “Feliz ano-novo!”. Ele se trancava no quarto, deixando-me do lado de fora. Sozinha, como sempre fui.
Durante todo esse tempo, ele não conseguia ter uma vida comum. Nem parecia o mesmo moço que tinha cursado Engenharia Eletrônica na Fundação Getúlio Vargas e que fazia cálculos monstruosos de Física... Eu havia decidido ficar ao seu lado simplesmente por amor, pois quem ama cuida, porém já estava no meu limite. Não nos faltava coisa alguma; tínhamos casa bonita com suíte, conforto, comida gostosa... Mas não conseguíamos comprar um grama de paz, saúde ou felicidade. Essas coisas não têm preço. Para ele, o mais valioso continuavam sendo o agasalho furado e uma porção de tampinhas de refrigerante guardadas embaixo do colchão.
Dinheiro não era problema. Tudo parecia fácil e, se precisasse de alguma coisa, a família dele logo providenciava, numa boa. No meu banheiro, não tinha uma bacia de alumínio; tinha uma banheira, onde eu ficava enlatada durante horas, feito um sapo cururu. Eu desejava viver intensamente, como todos daquela casa, participando dos churrascos de domingo, dos passeios
no feriado... Queria andar de jet ski, viajar com eles para a praia, conversar sobre nossos planos futuros, mas Fábio se trancava no seu próprio mundo.
Onde tivesse um cantinho escuro, ele se fazia de dono. Mesmo quando viajávamos, se isolava num buraco qualquer, vegetando com seu cigarro “Derby suave”. Dizia ser perigoso sair para a rua. Para ele, o mundo estava sempre em guerra, e as pessoas o perseguiam pelos cantos.
Não sabia mais ver as horas e não se interessava pela realidade. Nunca dizíamos um para o outro sobre o amanhã, porque era sempre algo muito vago. Ele não tinha noção dos dias da semana, entendeu? E eu comecei a ter dificuldades também, devido a nossa convivência. Tínhamos os mesmos costumes e quase as mesmas manias...Quando sentia desejos sexuais me jogava em qualquer canto , me encurralando como um bicho.Eu gritava tanto que a vizinhança aparecia atrás das cortinas, muros e portões, observando suas roupas voarem pela janela porque eu atirava tudo pra fora, numa tentativa de chamar a atenção.Quebrava copos e pratos nas paredes, pois não achava justo ter  que lhe servir os instintos.
Com o tempo, a minha relação com o pai dele foi ficando extremamente complicada, porque o pai desejava que Fábio fosse o outro Fábio; mas Fábio não conseguia ser essa pessoa, e se sentia incapaz, frustrado e cada vez mais deprimido.  Tudo ficou muito difícil para mim, e não consegui encontrar parceiros para dividir responsabilidades. Era cômodo assistir a tudo sentado numa poltrona com o controle nas mãos e um copo de vinho na outra...Cansei-me daquele estresse e arrumei a minha mochila com o pouco que possuía, pois havia decidido
que iria embora dali. Deixaria tudo no mesmo lugar, porque nada daquilo era meu de verdade. Antes de partir, no entanto, fui conversar com Fábio:
— Fábio, somente você tem valor para mim. Não preciso de nada disso para ser feliz. Você precisa? Se quiser, pode ficar. Eu vou entender.
Ele não pensou duas vezes, concordando comigo. Deixei um bilhete escrito em cima da mesa da cozinha, e pegamos o primeiro ônibus para Ubatuba, com a cara e a coragem. Ficamos na casa da minha mãe até que seus pais foram nos buscar. Então, lhes expliquei que não voltaria mais para São Paulo, porque precisávamos ter a nossa vida. Talvez longe dali, Fábio conseguiria melhorar e ser uma pessoa independente. Eles entenderam, e alugaram uma casa para nós no bairro do Perequê-Açu nos mandando os móveis depois.
Foram tempos difíceis, porque Fábio não tinha salário, e passamos muita necessidade. Eu colocava água no leite para render mais, pegava resto de feira para cozinhar e caminhava todos os dias por dois quilômetros e meio para chegar ao serviço. Quando engravidei do André, ele “pirou” de vez. Os meus tênis eram furados, as minhas roupas eram remendadas e as minhas olheiras eram cada vez mais profundas... Fábio mudava os móveis de lugar a noite inteira, e eu não podia dormir, devido ao barulho. No outro dia, precisava levantar cedo para ir trabalhar, mas muitas vezes só tinha vento para comer.Ligava  do orelhão a cobrar para a sua família e ás vezes estavam viajando para o apartamento em Santos e depositavam um dinheirinho na conta que eu usava para comprar os doces preferidos do Fábio.
Quando o bebê nasceu, ele não podia chorar alto. Fábio se irritava, beliscando-me. “Você tá judiando dele, né? Maldosa!” Éramos inquilinos. Os donos da casa moravam no fundo e não tinham um pingo de paciência com as “pirações” de Fábio. Ninguém entendia que ele  mexia em tudo o que era dos outros, como se fosse da própria família, mas que não fazia por mal. Nisso, os pais dele resolveram comprar uma casa bem simples para nós, no mesmo bairro, e pertinho da minha mãe, para que ela pudesse nos ajudar.
Não demorou muito para que ele começasse a me agredir. Mas não era uma surra comum. Era algo sádico e dolorido, principalmente por dentro. Quando não queria transar com ele, amarrava as minhas pernas com a corrente do portão e prendia com um cadeado. Depois, arrastava-me pelos cabelos, na frente dos meninos.
Nunca mais conversamos como antes. Os meus lábios eram mordidos em momentos de fúria e sangravam com muita facilidade. Eu não podia dormir em paz, porque ele me perturbava durante a noite. Quando estava com muito medo, punha os meninos um em cada colo e fugia para a rua, esperando que sossegasse.
— Por que o meu pai é assim? — perguntava Raphael.
— Ele está doente, mas vai melhorar, filhinho. É só uma fase ruim.
Não queria que ninguém soubesse a verdade, porque poderiam interná-lo.Mesmo quando os meninos contavam, eu disfarçava, rindo. “Fábio estava brincando. É bobeira!”, dizia.
Eu sempre me escondia; debaixo da cama, dentro do banheiro, no fundo
do quintal... Mas ele ia me buscar, cantando baixinho, como uma criatura
demoníaca: “Lindaa, eu te amo! Vem aqui, vem!”.
Numa noite macabra, levantou nervoso e resolveu cortar o meu cabelo com o facão de coco. Eu não podia nem me mexer, de medo que me machucasse de verdade. Só chorava, pedindo para ir dormir. Ele dizia: “Agora você tá bonita! É a minha menininha!”Às vezes, ele lambuzava todo o meu rosto com saliva, e depois me atirava num canto da casa, como se eu fosse um fardo de retalho sujo. Como não era nenhuma Madre Tereza de Calcutá, vingava-me nos remédios, colocando mais calmantes no seu leite. Queria que se acabasse de tanto dormir! Era uma mistura de amor e ódio. Sentia que era responsável por Fábio e me culpava por tê-lo incentivado a parar o
tratamento várias vezes. Por causa disso, ficou com seqüelas no cérebro.
— Foi você que me internou naquele hospício?
— Você sabe que não.
— Foi sim. Agora eu vou ter que dar umas palmadas em você...
E mordia todo o meu corpo, enquanto eu tapava a boca com o travesseiro, para não acordar os meninos. Como não suportava mais, resolvi procurar ajuda. Então, alguém me falou sobre a Dra. Elimar Coelho, médica psiquiatra aqui em Ubatuba. Eu sempre busquei um tratamento humano, e ela era a pessoa indicada.
Sem dizer nada para Fábio, marquei uma consulta, mas ele fugiu no meio
do caminho. Foram várias tentativas, nas quais eu tentava convencê-lo com muito jeito, senão ele me agredia.
— Fábio, nós temos dois filhos pequenos e precisamos de ajuda! Não agüento mais... Um dia, lhe prometi lealdade, mas estou no meu limite. Por favor, me deixe te ajudar! Eu ainda amo você.
Comecei a me bater, dando tapas no próprio rosto. Ele me abraçou, e ficamos ali, no canto da sala, em prantos.
— Eu tenho medo, Fábio! Eu sinto pavor! Você me machuca!
— Não sei o que aconteceu comigo, meu Deus! Piedade de mim, Senhor! Eu não posso viver assim... Sou um monstro!
Falei por quase uma hora sobre tudo o que pensava. A única palavra que ele conseguia pronunciar com clareza era: medo. Tinha medo. Pedi que confiasse em mim, porque jamais faria algo que lhe desrespeitasse. Então,  resolveu aceitar o tratamento e teve uma melhora rápida. Sua mãe lhe presenteou com uma mobilete dourada, e passeávamos para lá e para cá, com um capacete ridículo. Fomos felizes por um tempo e, inclusive, íamos juntos à praia. A gente conversava muito, sobre nada. Não existia assunto, mas existia companheirismo e amor.
Logo, o remédio não fez mais o mesmo efeito e, à noite, quando eu chegava do serviço, ele trancava o portão, perguntando quem eu era. O sapato estava dentro da geladeira e os móveis, todos fora do lugar. Eu pulava o muro da vizinha para abrir a porta de casa: “Meu Deus, que maldição!”, dizia.
Dra. Elimar me atendia mesmo sem consulta marcada e conversava muito comigo, orientando-me e me confortando. Explicou sobre os tipos de esquizofrenia, os efeitos do Haldol e do Akineton, o isolamento, as crises e, principalmente, sobre as seqüelas que Fábio já tinha, por ter “surtado” várias vezes. Encontrei nela uma amiga e confidente. Eu chegava na frente dela um caco de gente, resumindo-me apenas em um par de olhos assustados, mas Dra. Elimar me recebia como se eu estivesse inteira diante dela. Foi a única médica que conversou com ele,
perguntando como se sentia de verdade. Até chorei de emoção, porque percebi que alguém se preocupava com a gente, após anos de descaso. Ela o chamava pelo nome, fazia brincadeiras, aconselhava, dava broncas e não tinha nenhum tabu em nos explicar tudo sobre esquizofrenia. Com o tempo, Fábio já ia sozinho às consultas médicas, e passou a gostar da Dra. Elimar,
conversando, do seu jeito, com ela. Tenho muito que agradecer à Margarida de Brito e à Dra.Dilei de Brito, tias da Dra. Elimar Coelho, e à Késia Kamimura, na época coordenadoras do Posto de Saúde do Centro, porque me deram a maior força, amparando-me nos momentos mais difíceis. Se não fosse por elas, não teria conseguido conciliar o meu serviço com a minha vida particular.
Dra. Elimar nos orientou para que procurássemos o INSS, e Fábio foi aposentado aos 30 anos de idade por invalidez, passando a receber um salário mínimo por mês. Apesar do tratamento psiquiátrico, nenhum milagre acontecia. Havia se transformado num homem traiçoeiro, relaxado e extremamente gordo, sempre suando em bicas, como se estivesse indo para o matadouro. Não tomava banho e gostava de se vestir com as roupas que apanhava do varal dos vizinhos. Na nossa rua, era discriminado pelos vizinhos, que faziam dele um motivo de chacota. Isso me magoava bastante, e resolvi voltar para São Paulo. Sua família nos cedeu uma outra casa na Mooca, para que pudéssemos morar. Por ser funcionária pública estadual, pedi transferência novamente para o Centro de Saúde da Vila Maria. Enquanto a minha transferência não saía, eu morava aqui em Ubatuba e, nos finais de semana, ia para São Paulo com os meninos. Ele tinha alguns momentos de lucidez e anos de “piração”. Convenci seus pais de que ele precisaria fazer um tratamento particular com um especialista em esquizofrenia, Dr. Hélio Elkis, no Hospital das Clínicas de São Paulo. Íamos de metrô, e ele fugia de mim, deixando-me louca a sua procura. Gastava todo o dinheiro da passagem com balas e iogurte. Depois, precisávamos voltar a pé. Ele ia atravessando as ruas em disparada, enquanto eu tentava alcançá-lo a todo custo, morrendo de raiva. É lógico!
Na última consulta médica, Dr. Hélio sugeriu que o deixasse internado, porque Fábio não tinha mais noção do perigo e estava correndo risco de morte. Porém, sabia que Fábio nunca me perdoaria se concordasse com isso. Então, preferi cuidar dele em casa e assinei um termo de responsabilidade. Internação, para nós, era sinônimo de camisa-de-força, chiqueirinho, choque elétrico... Por mais que o Dr. me explicasse que daquela vez seria
diferente, queria Fábio perto de mim. Éramos casados, e eu lhe seria fiel, na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Você se lembra desse juramento? Pois é, eu fazia disso um compromisso de honra, muito mais que uma obsessão. Eu acreditava que, numa terça-feira da sorte, uma linda canção tocaria na nossa rua encantada, reunindo novamente o sorveteiro, o tio da pamonha, os meus amigos de farra, o papagaio Lorys Lay, todos aqueles que já se foram e as italianas alegres e hospitaleiras da Mooca, com todas essas pessoas gritando de alegria: “Fábio voltou! Fábio está curado! Deus cuidou dele!”
E eu estaria na calçada, com minhas longas tranças escorridas no ombro, esperando, de braços abertos, que ele surgisse atrás dos fardos de estopa, chamando-me para recomeçar a nossa história de amor. Mas Fábio foi embora para o seu mundo de açúcar, e nunca mais voltou!
Neste fragmento da minha história, o belo príncipe encantado transformou- se num imenso sapo cabeludo, que comia moscas na beira do lago, vendo a vida passar dentro do seu mundo de vegetal:

“Já não sabia há quanto tempo estava olhando pelas grades daquele  quarto triste e vazio, mas repleto de pensamentos confusos que me  faziam ter insônia durante a noite e delírios constantes no decorrer  dos milhões de minutos, homicidas de toda a energia concentrada nos  meus olhos. Olhos negros, sonolentos e dopados pelo mesmo psicotrópico
de sempre, receitado após as refeições como se fosse um docinho  de abóbora. Agora eu não era mais o moleque comum que sorria no quadro da parede, no qual não me enquadrava num retrato feliz.
Era mais um doente da sociedade, isolado da minha própria família  em nome da benevolência humana e jogado junto com o meu medo
diante de um psiquiatra, dono absoluto do meu corpo, do meu destino e dono de mim! Minhas pernas tremiam de tantos remédios e, quando  passei as mãos nos cabelos, percebi que foram picotados. Melhor
assim, porque não precisava mais pentear, como antes fazia. Não  precisava mais ser o bonitinho para ninguém, pois a ala feminina do  manicômio era saturada por mulheres frias, silenciosas e silenciadas  pela solidão. Chamadas apenas de Loucas Varridas, que arrastavam  suas caras sonsas pelos corredores, à procura de motivos que  as fizessem acreditar que teriam um almoço familiar ao lado daquele  marido distante, que nunca mais apareceu. Igual a mim. Tínhamos
as mesmas caras e o mesmo uniforme pálido, que não definia nossas  curvas, nos transformando em seres assexuados e “alheios”. Ali dentro, eu não era mais o estudante de eletrônica que havia sido.
Esse homem havia ficado para trás dos muros, num passado que não  fazia parte da minha nova personalidade. Uma camisa-de-força havia  nos separado e, quando as pessoas ao meu redor perceberam que eu não poderia ser mais aquele homem sociável, subitamente me prenderam  dentro de um camburão, no qual fui conduzido para um outro
mundo, confinado a permanecer vagando entre os demais desiludidos, como carcaças humanas entupidas por calmantes, apenas para  não incomodar.
Este hospital tem um jardim florido e muitos bancos pintados com tinta  clara. Depois das árvores coloridas tem um muro alto, que vai além dos meus olhos e da minha imaginação. Sei que depois dele tudo é diferente  e perfeitamente normal. As pessoas do outro lado não babam  e não adoecem de pavor ao saber que não existe futuro... Estou aqui,
esperando que um dia não exista mais nenhuma doença mental; que um dia não exista mais esta solidão; e que um dia alguém venha apenas  me ver. Podem me trazer pipocas, dar comida na minha boca e  me fazer uma graça sem me deixar sem graça por eu não achar mais nada engraçado. Vocês podem percorrer este jardim desbotado, passar
pelo isolamento e depois ir embora. Abrir aquele portão de ferro com os olhos impregnados de piedade, dar um aceno distante, virar as costas e simplesmente ir embora. Você já me deu a certeza de um  destino incerto; me deu calmantes para ficar tranqüilo dentro de um manicômio; me deu uma camisa de força para não me rebelar contra
uma estrutura falida, um sistema que castrou a minha liberdade de poder simplesmente tomar cafezinho no bar da esquina. E agora, vai me dar o quê!? Preciso ser livre. Neste verão, não quero vestir uma  camisa-de-força. Quero usar uma camiseta colorida, como você".
                                                                 Fábio Retti


 

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