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Agora chegou a minha vez de falar!


É a primeira vez que tomo a iniciativa de contar o outro lado da história para que você  também conheça a minha versão.O Livro Flash, você sabe o que eu tenho?  abriu  as portas para  eu ter uma conversa comigo mesmo e  refletir  sobre os meus erros e acertos.Não me condene, não me critique e não me  ignore.Procure me compreender.

O meu nome é Sergio Rossi e nasci no bairro do Brás em São Paulo nos anos 60, mas conheço Ubatuba desde criança, pois minha mãe é caiçara.
Venho de uma família de descendente de italianos do Sul da Itália  e somos em seis irmãos, sendo que o Marcelo faleceu aos sete anos de idade.Ele era uma criança “especial” em todos os sentidos  e deixou saudades. Minha mãe, Dona Terezinha, foi uma mulher muito guerreira.Ela adorava crianças e  dedicou toda a sua vida ao trabalho infantil  em escolas e  creches da região; foi  merendeira e ainda ajudou na criação dos netos.Gente boa e com certeza se tivesse ouvido os seus conselhos, talvez a minha história teria sido outra.Mas cada um tem o seu caminho e  as suas escolhas; apesar de me arrepender de muitas coisas que fiz  tento dar a volta por cima e recomeçar, sempre.Meu pai  gráfico e tinha problema com alcoolismo.

Comecei a  trabalhar aos nove anos de idade como engraxate na Galeria do Brás e todo o dinheiro que ganhava era gasto em comida.Depois consegui um emprego nas Casas Buri como office-boy e sentia vontade de ter as coisas igual aos outros meninos da minha idade.Ficava babando nos tênis importados e nas comidas gostosas!

Depois do serviço fazia questão de colocar um terninho de tergal comprado na loja, com desconto especial para funcionário, só para ir ao Fliperama.Nesta época eu já fumava cigarro junto com meus amigos ex-internos da Febem.A gente costumava bater um bolão no campinho da vila e tomar grapete  para matar a sede. Logo fui apresentado ás drogas e para a cocaína foi um “tiro”.
Tive uma infância pobre e e
ntão para  ajudar no orçamento comecei a pegar firme no serviço e tentei mudar.Tive muitos relacionamentos  amorosos e fui feliz a minha maneira.Casei-me muito cedo e descasei mais rápido ainda.Tive um filho, porém  nunca mais nos vimos. Embalei nas drogas e  fui ficando cada vez mais louco.O círculo foi fechando e para fugir daquele estresse  todo peguei minhas  tralhas e desci a serra indo morar em Ubatuba.

Quando conheci a Silmara eu já tinha um relacionamento de oito anos com uma professora e as coisas não iam muito bem .Tava injuriado, drogado e transtornado! Queria  vida nova! Precisava de outras emoções e o nosso namoro estava xoxo; sem graça.A Silmara era casada com o Fábio e todo mundo sabia.Todo mundo também dizia que ele era louco e que os dois eram pirados.Ela era hilária : usava umas roupas estranhas , sem pé e sem cabeça.Parecia que estava sempre no mundo da lua,mas era bonita e inteligente.

Fomos trabalhar juntos e eu conseguia lhe fazer rir...Ríamos muito.Nos apaixonamos do nada e quando vi não queria mais voltar para casa.Queria ficar com ela e dizia isto.Queria que ficasse na minha cama e na minha vida até o fim.Silmara só teve o Fábio e isto era diferente! Só que o tesão se transformou em paixão...e de repente  a minha namorada ficou doente e morreu. O Fábio também. Nossa, que doidera!

Nos casamos...Tivemos o João Pedro...Eu tinha HIV e não sabia.Sério! Achei que nunca ia acontecer comigo. A gente nunca espera. Me senti culpado.Me senti um lixo! Chorei muito .Como será que peguei aquilo? Mulher? Droga?Há muito tempo atrás havia usado cocaína injetável e depois aprendi que após a contaminação o vírus pode ficar anos só se multiplicando dentro de você sem se manifestar. Fiquei mal. A Silmara  também estava com HIV e não merecia.Nunca teve outro cara...não fuma...não bebe.Por que ela? E o pior é que foi a Silmara quem me deu o diagnóstico logo quando sai do hospital, travado e usando fralda.

Bem, ela faz questão de contar a nossa história  porque é escritora e tem o dom das palavras. Não quero me lembrar de todas ás vezes que lhe magoei, dos tapas no rosto;   xingos, desespero pelas drogas, dos nossos moveis que saiam pela janela, escondidinhos para que ninguém percebesse que eu estava trocando por um papelote; das noites que lhe deixei em casa para sumir atrás do craque...Mas eu estava doente e não sabia.Doente do corpo e da alma!
 

As pessoas dizem que me encontraram desmaiado no banheiro ainda com o chuveiro ligado.Fui levado ás pressas para a Santa Casa  e logo o médico afirmou  com convicção : é AIDS.
O diagnóstico virou um bafafá danado.Em pouco tempo todo mundo já sabia, menos eu, e com detalhes: - é um drogado! Bem feito. Alguns sentiam dó e outros raiva.Eu não conseguia raciocinar direito e o meu corpo continuava paralisado. Uma voluntária  dava sopa na minha boca torta e meus parentes choravam ao redor.

Recebi alta no Dia dos Pais e entrei em casa carregado no colo porque estava pesando 40 quilos.Até aquele momento achava que tinha tido um derrame, mas Silmara esperou que eu pudesse compreender  melhor  as coisas para dizer que estava com Aids.Aliás, que estávamos com Aids.Eu quis morrer naquele instante.Chorei alto, muito alto até doer todo o corpo.Ela estava amamentando o nosso filho de seis meses e para mim foi doloroso demais.Meu irmão revezava com a Silmara para me dar banho amarrado  por uma tira de lençol numa cadeira para não cair.Muitas vezes não conseguia chegar a tempo no banheiro e sujava toda o pijama.Não tínhamos mais dinheiro para comprar fraldas, pagar conta de água e luz , ir ao mercado...Logo ficamos no escuro e á míngua. Nisso minha família deu a maior força e conseguimos, aos poucos, superar.A minha família é muito unida.
Eu costumava ficar  o dia todo sozinho em casa para que ela pudesse trabalhar e a minha vida foi passando feito um filme diante dos meus olhos: até pouco tempo era um rapaz forte, aparentemente saudável e ativo.Estava viciado em craque quando tudo aconteceu.Na minha primeira consulta com o infectologista entrei numa cadeira de rodas e o médico me explicou que tive uma toxoplasmose, uma doença oportunista da Aids.No mesmo dia entrei com o coquetel e mais um monte de remédios.No começo sentia enjôo e vomitava muito.Como já tomava um monte de comprimidos  não conseguiria usar qualquer tipo de droga porque acho que explodiria. Jurei para mim mesmo que nunca mais usaria nada.
O tempo foi passando e eu ficando cada vez mais careta porque não tinha forças para sair e procurar os meus contatos.Sumiram todos! Só sobrou a minha família.Ainda bem, porque longe deles consegui me desintoxicar.Tem que ser assim! É preciso ter atitude.Ou é ou não é.Eu não tinha outra escolha se quisesse viver.Silmara não ficaria comigo se eu ficasse com as drogas! Foi firme e eu fechei com ela: sem drogas.É lógico que eu quase pirei; me apeguei a Deus e tentei...um dia de cada vez.Tinha vezes que tentava rastejar até o portão só para encontrar algum conhecido meu e pedir para dar, encarecidamente, uma “bola” , porém não conseguia me mover daquela cama.Aliás, daquele colchão pois a cama eu havia trocado por pedra de craque .E ficava ali largado o dia inteiro.Os meninos eram pequenos e ficavam na casa da minha sogra.Na hora do almoço algum deles vinha com uma marmita e  um suco na garrafinha  me ajudando a comer e a ir ao banheiro.Raphael  estava com quase dez anos e ,sem entender o que estava acontecendo,  escrevia bilhetinhos de solidariedade me chamando de pai. Isso tudo me emocionava muito. Eu sabia o quanto eram carentes porque tinham perdido o Fábio.
O médico disse que talvez demoraria muito para andar, mas sempre fui obstinado e ficava treinando os primeiros passos apoiado no cabo da vassoura.
No começo eu  caia pelos cantos da casa, ralando todo o corpo flácido e sem movimento no assoalho.Fiz fisioterapia durante dois anos e me arriscava a andar de bicicleta dentro do quintal.A droga foi reaparecendo , foi ficando muito difícil sair fora da situação e eu consegui aos poucos um dia por vez. Encontrei na minha família o meu refúgio e percebi que estava ali os meus verdadeiros amigos.Por eles e principalmente por mim redescobri  a vida.

Devo muito a minha fam´lia que sempre nos apoiou e principalmente a minha mulher.Ela poderia ter me deixado, se quisesse.Quem poderia questionar? Mas esteve ao meu lado o tempo inteiro e recomeçamos a vida.Os anos se passaram e conseguimos comprar um carro e eu voltei a dirigir. Não tenho movimento no braço direito e aprendi a fazer tudo só com o esquerdo.Hoje faço musculação, caminhada na praia, curso de pintura , ajudo a cuidar da casa e dos projetos sociais que coordenamos. EStive no Pico do Corcovado e recentemente participei de uma Romaria até Aparecida do Norte; três dias andando com o apoio de um cajado.

Silmara é muito dedicada  e quando pode passa mais de 15 horas no computador . Quase não sai de casa e muitas vezes  observa o dia passando pela janela do seu mini  escritório. Eu tiro o chapéu pra ela.Tem muitas idéias boas e vive antenada com novos projetos, campanhas, livros, blogs...É  perfeccionista demais! Desejo , sinceramente, que consiga alcançar todos os seus objetivos porque é determinada e corre atrás das oportunidades .
Ajudei a fundar uma Associação de Apoio aos soropositivos, onde fui presidente. Agora  Silmara fundou o Blablablá Posithivo  e também faço parte  ajudando os outros em seus momentos de superação.Ela é autora de diversos projetos sociais e estamos juntos em tudo, sempre.Eu faço de tudo um pouco para que as coisas caminhem em paz e harmonia.
      A minha vida foi  sofrida , hoje sou muito feliz e só tenho que agradecer a Deus.Acredito que  tudo que a gente faz  recebe em troca.É a lei da Causa e do Efeito.Sou apaixonado por minha mulher  guerreira  porque se não fosse por ela minha vida teria um outro rumo.Adoro os meus três filhos e meu neto Davi, que me completam como ser humano.

São eles que fazem o meu dia a dia melhor  me dando forças e muito carinho  para que eu possa seguir com serenidade , otimismo e fé. Apesar de todas as dificuldades, com certeza, agora eu tenho  saúde mental e qualidade de vida porque para nós a Aids não é o fim, é apenas um recomeço...com muito amor, é claro!

                                                                                                                      Sergio Rossi
                                                 
                     

 

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