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 A  cada   amanhecer!


Comecei a namorar Serginho em casa e, aos poucos, fui reconstruindo a minha vida. Com ele, tudo era mais divertido, porque me fazia rir o tempo inteiro. Andávamos de bicicleta pela cidade, dançávamos forró e fazíamos o que eu nunca havia feito com Fábio: desde observar o nascer do sol até acampar numa praia deserta. Os meninos também curtiam, com direito apipas, algodão-doce, pipoca e mil fotos no nosso álbum de recordações.
Não estava acostumada com um homem que conversasse fluentemente sobre a “morte da bezerra”, e achava o MÁXIMO! Você pode não acreditar, mas eu nunca havia sido tão feliz! Era como se fosse o meu primeiro namorado: tinha sorvete no sábado à tarde, pizzaria no domingo à noite, gargalhadas estrondosas, banho de mar, beijo de língua... Eu era uma outra  pessoa, e aquela expressão de tristeza já era coisa do passado. Atendendo a um pedido meu, Serginho não se drogava mais quando estávamos juntos.
Não era a minha praia, e ele precisava respeitar.
De repente, comecei a sentir muito enjôo, principalmente quando ouvia a voz de Serginho, e fomos a uma consulta médica com o Dr.Davidson.
Estava grávida; e pronto! Meus pais ficaram contrariados, e eu fiquei muito deprimida. Para Serginho, foi uma surpresa maravilhosa, e ele me convidou para ir morar com ele na casa que dividia com seu irmão Fabinho no Bairro do Taquaral, lá no “ó do forrobodó”. Eu disse: “Eu não quero. Vou assumir tudo sozinha”. Mentira, porque seria difícil “tocar o barco” sem o apoio dos meus pais. Serginho fez que fez, martelou na mesma tecla, e acabei concordando.
Na noite da nossa mudança, esperou que eu dormisse para cheirar toda a farinha do mundo. Seu irmão acabou se mudando de lá, para que pudéssemos levar a nossa vidinha em paz. Paz??? Era o começo do fim... Droga é um precipício... Quase sem volta. Não tínhamos comida gostosa, e ficávamos conversando até de madrugada sobre frangos fritos, ensopados ou assados. Dava até água na boca!
— Imagine agora uma macarronada com porpeta, igual àquela que a sua mãe costumava fazer... Fecha o olho e finge que tá colocando o queijo ralado em cima... Hum! Agora, que tá dando a primeira garfada... Hum! Tá no ponto! Delícia!
— E agora, vou servir um pudim de leite condensado. Fecha o olho...E depois a gente ia dormir com a barriga cheia, de tanto beber água gelada...
Não fiz nenhum exame pré-natal, pois achava que éramos saudáveis até demais! Trabalhávamos na Secretaria de Saúde de Ubatuba, discursando em todas as línguas sobre a importância do uso do preservativo, mas nunca usávamos. Na verdade, fazíamos parte do grupo de lunáticos que ainda acha que coisa ruim só acontece com os outros. Com nós, jamais, porque ele não tinha a cara da Aids: era bonito, sarado e tudo de bom!
Para mim, teste de HIV era bobagem, simplesmente por me sentir a própria “Rainha da Sucata”, e ele, o “Rei da Cocada Preta”. Enquanto isso, dentro de nós crescia um motim, prestes a se rebelar a qualquer momento, mas nem desconfiávamos de nada, porque o vírus HIV é pior do que vizinha fofoqueira: pode ficar ali “na miúda”, durante anos, mas quando resolve mostrar a cara, já chega abalando. Por isso, é importante saber o diagnóstico
o mais cedo possível, para evitar as doenças oportunistas.
Você sabe o que é doença oportunista? A pessoa que tem HIV e não realiza o controle de sua infecção com um médico, para que seu tratamento seja iniciado no momento certo, pode apresentar sintomas que vão piorando, como sapinho, irritação na pele, febre por vários dias, diarréia que não passa, falta de ar, suores noturnos, cobreiro, e muitos outros. E, se continuar sem tratamento, a destruição das células de defesa é muito grande. Então, várias doenças aproveitam a oportunidade e, BUM, atacam! Quando a pessoa que tem o HIV começa a apresentar as doenças oportunistas, dizemos,
então, que ela está com Aids. As doenças oportunistas mais comuns são: sapinho muito forte, que não sara; tuberculose; pneumonia; toxoplasmose; e um tipo de câncer de pele, chamado Sarcoma de Kaposi.
Naquela época , Serginho não tinha nada para me oferecer, além de geladeira vazia, potes de água gelada e longas noites de solidão, porque sumia no mundo, voltando após dias e noites na gandaia. Pior que eu nem poderia reclamar para minha mãe! Depois de um tempo, a nossa luz foi cortada, e eu tinha muito medo do escuro. Eu dizia: “Estou sozinha neste lugar.
Sozinha, como sempre fui... Senhor, me ampare!”. Logo, ficamos também sem água. E sem casa, porque ele não conseguia pagar a prestação. Todos os nossos poucos móveis foram sumindo na calada da noite, e Serginho dizia que havia vendido. Mentira! Estava pagando dívida com traficantes.
A nossa vida foi virando um inferno, e eu não tinha mais de onde tirar forças.Então, pedi que o inquilino saísse da minha casa no Bairro do Perequê- Açu, e fomos morar lá. Mas a situação foi piorando cada vez mais. Eu o mandava embora, mas não tinha jeito que desse jeito. Voltava mais alucinado que nunca, quebrando tudo com um pedaço de pau. Descobri que estava fumando crack com um pessoal da “barra pesada”, e que dava a eles quase tudo o que tínhamos. Aliás, o pouco que ainda tínhamos: era aparelho de som, videocassete, tênis, jaqueta, máquina de lavar louças... A nossa dignidade, e a minha alegria de viver! Eu o odiava muito!
Quando o João Pedro nasceu, não foi me visitar no hospital, porque estava na farra. Aliás, ninguém foi. Minha mãe não falava mais comigo e, no horário de visitas, eu cobria o rosto com o cobertor para que não me vissem chorar. Voltei para casa sozinha, com a criança no colo. Ele apareceu após dias, brigando com o fogão: “Este fogão é um folgado! Fica me encarando. Quem ele pensa que é?”
Era um alívio quando se arrumava todo para sair; mas era um inferno quando voltava! João já estava com seis meses de vida, quando ele começou a sentir fortes dores de cabeça. Vomitava muito e gritava de dor. Eu ouvia em silêncio, desejando-lhe tudo de ruim.
Queria que morresse e nos deixasse em paz: “Dona Terezinha, me ajuda!” — orava para a mãe dele, já falecida.
Numa terça-feira da sorte, desmaiou embaixo do chuveiro, e eu fingi que não havia visto. Amamentei o bebê e fui dormir. Quando o dia amanheceu, ele continuava no mesmo lugar. No começo, achei que fosse frescura. Sabe como é, homem é muito exagerado! Ajeitei a casa tranqüilamente, lavei a louça, cuidei dos meninos, li uma revista... E ele lá, esmilingüido num canto, como uma jaca mole: “Bem feito! É o crack!” — pensei. Quando parou de
gemer, caiu-me a ficha: “Xi, aconteceu alguma coisa!”
Após horas, resolvi chamar uma ambulância, e ele foi internado na Santa  Casa de Ubatuba. Nossa! Era toxoplasmose. Ou seja, uma doença oportunista,  que esperou quietinha a resistência do organismo abaixar a guarda e atacou de sola!
Foi tudo muito rápido. Ambulância, Santa Casa, internação... Precisei fazer um exame de anti-HIV; de repente, estava com o resultado positivo nas mãos, um nó na garganta e uma vontade imensa de me virar do avesso... O tempo parou naquele instante; procurei sorrir: “Sério, estou bem!” — minha voz saiu como um miado.
Por mais que dissessem que coletaria uma segunda amostra, estava na cara que o diagnóstico “seria batata”! Pronto, estava diante do meu atestado de óbito: já me via seca e esturricada, vagando pelas ruas da cidade. E, no meu caso, seria uma morte dupla, pois pediram um exame para o nosso filho, que já estava com seis meses de idade, orientando que eu não deveria mais amamentá-lo. Um minuto atrás eu até sorria; agora, chorava. Era outra pessoa, com outro
destino: o cemitério. Em breve, estaria vendo a grama nascer por baixo...
Quanto tempo de vida nós ainda teríamos, meu Deus? Sei lá. Triste fim!
Talvez fosse fulminante, feito um raio certeiro. Ou lento, feito uma tartaruga manca. As pessoas conhecidas diriam: “Ela se foi, coitada! E o vento levou...
Sem lenço e sem documento, feito uma batatinha palha voando pelos ares!”
Pela manhã, eu pertencia “à nata” da sociedade; agora, fazia parte do “gueto”. Que estranho! O meu mundo caiu, e eu me sentia um farelo de gente.
Apenas pensamentos macabros pairavam sobre a minha cabeça. Acho que, naquele momento, envelheci cem anos, transformando-me na “Bruxa do 71”.
O mais importante, para mim, era a saúde do nosso filho... E que Deus proteja as criancinhas! Eu preferi sofrer por etapas, senão “pirava” de vez. Era um bombardeio na minha cabeça, e precisava organizar a agenda. Bomba número 1: “estávamos” com HIV. Bomba número 2: ele já era doente de Aids, por ter desenvolvido uma doença oportunista. Bomba número 3: encarar o mundo. Bomba número 1.005: vontade de me enterrar viva no Iraque, junto com o Saddam Hussein!
Quando percebi, estava sozinha com o resultado guardado no bolso da calça, e não teve muito papo: “engoli aquele sapo cabeludo” e saí, sem rumo, cega, surda e muda de pavor. Estávamos em meados de 1999 e, naquela época, a Aids ainda era um “bicho-papão” totalmente misterioso, o qual habitava as profundezas do pântano. Não tínhamos tantas informações  e recursos como agora. Era uma fase ainda braba!
Quem me acolheu de imediato foi a minha cunhada Márcia Rossi , levando- me quase arrastada à casa da Dra. Dilei, para que conversássemos um pouco. Eu continuava anestesiada, confabulando somente com meus botões: “E agora? Será que sobreviveria até a noite? Nasceriam pelotas na minha cara? Cresceriam pêlos na barriga? Talvez me transformasse num MINOTAURO perneta... Ferveriam a minha roupa num caldeirão de alumínio? Dormiria na casinha do cachorro, amarrada por uma coleira, apenas para não me misturar com os donos da casa?” A Dra. Dilei falou: “Você fez um exame anti-HIV cujo resultado deu positivo.
Isso significa que é portadora do vírus, mas ainda não desenvolveu nenhuma doença oportunista. Será preciso passar em consulta para que o médico, através dos exames de CD4 (contagem de células de defesa) e CV (contagem de vírus HIV), possa avaliar se já é o momento de entrar com o coquetel. Com um tratamento monitorado, você pode levar uma vida como qualquer outra pessoa.”
Por mais que me explicassem a real, não conseguia captar a mensagem.
A minha cabeça estava “dando um nó”, e eu estava completamente dominada por um monte de baboseiras. A minha única certeza era a de que carregava dentro de mim um vírus matador, mas ainda não sentia nada. Eu continuava do mesmo jeito: morena, de cabelos ondulados, 1,67 metro, 60 quilos, olhos esbugalhados... Agradeci o carinho demonstrado pela Dra., porém eu precisava ficar sozinha, para ter os meus chiliques em paz, exorcisando os próprios demônios. A situação vivida no momento da entrega do resultado desperta sentimentos de morte e de medo do futuro. Cada um tem o seu jeito de reagir.
Uns se trincam de raiva, tentando buscar um culpado. Outros se aniquilam naquele instante e passam a viver como se estivessem mortos. Há pessoas que recebem o resultado positivo e negam: não é verdade, e pronto! A história de relação anterior com o HIV e com a Aids também pode levar a dificuldades de aceitação. Se você nunca se interessou pelo assunto e praticamente não sabe nada sobre ele, é uma marretada na cabeça. Se já se interessou alguma vez e pensa que sabe tudo, são duas marretadas. Como tempo, vai perceber que esta Aids é diferente de todas de que você ouviu falar: é mais dolorida e verdadeira... PORQUE simplesmente é a sua!
Independentemente de um resultado positivo ou não, é essencial se atualizar com informações sérias, deixando de lado mitos ou tabus. O mundo não é feito de açúcar, e precisamos estar conectados para que a realidade da vida não nos pegue de surpresa, fazendo-nos cair no desespero e na inércia, como crianças mimadas. Existe um tempo para o resultado do diagnóstico. Um tempo para absorver a situação. Um tempo para o choro, a raiva, o desespero... Não pode estacionar aqui, porque depois é o tempo para tomar atitudes. Fazer acontecer!
Liguei para a minha sogra, mãe do Fábio, em São Paulo, e num minuto lhe contei o ocorrido, como se estivesse registrando um Boletim de Ocorrência.
Ela procurou me confortar, dizendo que chegaria a Ubatuba assim que pudesse, e já no dia seguinte fez uma visita rápida, mas fundamental. Trouxe algumas revistas daquela época, as quais abordavam o assunto de uma maneira mais positiva.
Tudo estava muito confuso, e eu não sabia o que fazer. Não queria que os meus pais soubessem das últimas novidades de uma forma tão precipitada.
Primeiro, queria digerir lentamente aquela “sopa de cascalho à moda da casa”. Se eu me desesperasse, tumultuaria ainda mais a situação. Seria essencial uma noite somente para mim, cara a cara comigo mesma, para que pudesse sinalizar com bandeiras, semáforos e pedágio a nova estrada que deveria seguir.
Queria sentir como eu estava conseguindo lidar com a situação. Não poderia depender dos outros para adotar certas diretrizes na vida. O apoio seria importantíssimo, desde que eu estivesse centrada e lúcida em minhas decisões. Deixei os meninos com a minha mãe, dizendo apenas que precisava  ficar um pouco sozinha. Andei de lá para cá, feito um zumbi, com os  olhos arregalados nos móveis da casa. Filmei cada detalhe, tentando distrair o pensamento, mas não conseguia raciocinar direito. Qual seria a pauta da reunião? EU, depois EU e, se sobrasse mais tempo, EU de novo.
Impossível retomar as rédeas da situação se continuasse um caco. Com a pá de lixo, recolhi o que havia sobrado de mim, para que pudesse avaliar o tamanho do estrago. Era eu comigo mesma! Não queria que ninguém “metesse o pitaco” nas minhas decisões. A última coisa que precisaria ouvir era um discurso moralista, do tipo: “Você é isto e aquilo. Por que não usou camisinha?
Agora, bem-feito! Bem que eu avisei! ‘Piriri e pororó’! ‘Tererê e tererê’!” Ficar martelando na mesma tecla não ajudaria em nada. Deveríamos ter pensado nisso antes. Havíamos dado uma pausa no capítulo em que eu havia recebido o resultado do meu exame anti-HIV positivo; então, vamos rodar a fita para frente.
Precisava separar o joio do trigo, estabelecendo diretrizes para que não me perdesse no escuro. Ninguém consegue ficar “bololó” por muito tempo, repousando no “Berço Esplêndido da Paranóia”. Chega uma hora em que você tem de colocar os pés no chão e ressuscitar no sétimo dia. Respirei fundo. Plano A: não “pirar”. Plano B: se “pirasse”, tudo bem, desde que voltasse ao normal rapidinho.
O que sabia daquela doença? Só as coisas ruins. Então, deveria me atualizar.
O que esperava de mim mesma? Reagir, de uma maneira consciente e equilibrada. O que iria fazer? Aceitar o problema e procurar tratamento.
E ele? Era melhor esquecê-lo, pois estava sendo bem-cuidado, na Santa Casa. Primeiro, eu deveria pensar em mim. Aquele era o meu momento. Ele que se arruinasse!
Ah, eu tinha me esquecido da visibilidade! Agora, o “bicho pega”... Ser ou não ser? Ser eu mesma, é claro! Não existe “meia Aids” ou “ligeiramente contaminada”. Eu estava contaminada pelo vírus HIV da cabeça aos pés, e não tinha mais como tirá-lo de dentro de mim. O negócio era adotar o “bichinho” como parente, do tipo daquele cunhado, bem “mala”, e formar uma família feliz... A sua presença não era bem-vinda, mas deveria ser encarada
da melhor maneira possível. Agora, ele era o meu “personal vírus TABAJARA”!
Para isso, eu contava com o apoio da equipe de DST/Aids de Ubatuba, a qual me daria todas as dicas para mostrar a ele quem ainda mandava no pedaço: EU!
Resolvi fazer o tratamento na minha cidade, com os profissionais que eu já conhecia e nos quais confiava. Éramos companheiros de serviço, e a ligação de amizade seria perfeita para o sucesso do tratamento. No começo, poderia ficar um pouco constrangida, mas nada que não pudesse ser superado com o tempo.
Eu não queria ficar com o rosto da Aids; na verdade, queria que ela ficasse com um rosto mais “bacana”: o meu, sempre maquiado com rímel, gloss e delineador. Eu tinha cara, corpo, essência e vontade própria. Não era oca.
Dentro de mim, habitava (e habita) uma vida inteligente. Como vê, sou uma mulher um pouco brega, mas com recheio. Esta sou eu. No meio de toda essa situação, quem é você? Alguém com corpo, alma e cara? Cara de gente do bem, que encara qualquer problema com a cara limpa? Eu não me resumo a um vírus. Sou muito mais do que ele! E deveria me lembrar disso  todas as vezes em que necessitava tomar alguma decisão importante. O HIV estava dentro de mim, mas éramos diferentes. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa! Jamais eu me igualaria a ele! Todo sentimento de revolta, raiva ou desprezo que pudesse sentir deveria ser direcionado a ele, não a mim mesmo, ou a alguma outra pessoa.

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