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Hapiá, meu duende camarada!

Só consegui acordar no outro dia, debruçada no colo da minha mãe. Não tinha mais Raul Seixas e Roberto Carlos, nem o cheiro de estopa molhada que exalava do seu corpo nu. Adoeci também, louca de saudades. Urinava na cama durante várias vezes ao dia, sem ter o que falar. Falar o quê, meu Deus? Parei de comer. Cortei os cabelos com a faca e risquei todo o rosto com
uma lâmina de barbear. Era o meu jeito de gritar por socorro! Só que, após algum tempo, ninguém se lembrava mais de nada, e já fazíamos parte das notícias do passado.
Quando fui visitá-lo na sua “nova casa”, ele me deixou esperando por quase uma hora no corredor. Pedi a Deus que me desse uma força e fui ao seu encontro, no quarto. Estava com os cabelos picotados, inchado e dopado.
Falava mole e não parava em pé, marchando no mesmo lugar.
— Oi! Eu sou a Silmara, sua vizinha do fundo, lembra de mim? — perguntei, receosa porque sabia que também estava envergonhado.
— Oi! Eu moro aqui, agora. O que você me trouxe de presente?
O mais ridículo era que eu tinha levado uma penca de bananas dentro de uma mochila velha. Depois não entendia porque me chamavam de cafona...
— É o que eu tinha em casa... Depois, quando você sair daqui, te dou outra coisa melhor. Pode ser? Um LP do Tim Maia. Sei que você gosta.
A clínica era linda, com bancos de madeira e jardins floridos, mas com
um portão de ferro e muros enormes ao redor. Os médicos tinham uma cara empalhada, sem expressão, e desfilavam de avental branco pelos corredores, com ar superior.
— Tô tão feio... Gordo, sem cintura... Baludão! — Sorriu, mesmo querendo chorar.Estava apavorado, e eu também. Os médicos disseram que ele tinha um distúrbio mental, de caráter genético, incurável e degenerativo. Como assim? Ele tinha esquizofrenia porque alguém da família também tinha, e com o tempo ia ficar cada vez pior. Sem chances de cura, é claro. Ele tinha esquizofrenia porque alguém da família também tinha, e com o tempo ia ficar cada vez pior. Sem chances de cura, é claro. Se tivesse filhos, então, passaria para eles através dos genes, como uma herança maldita. O que tínhamos feito de tão podre para merecermos tamanha desventura? Nossa,  Deus não gostava da gente!
Éramos perseguidos por sua ira e, com certeza, seríamos banidos da sociedade para sempre. Somente por isso os nossos nomes são detalhes, que menos importam nesta história maluca, porque poderiam ser o seu nome, do seu filho ou de alguém que ame muito. Mas o que não derruba nos fortalece.
Precisamos aprender a cair SEMPRE de pé, e eu o esperei cada minuto longe, e ninguém da sua família me convidou. Eles nem se lembravam de que eu existia e, para eles, era apenas uma menina sonsa, sem pé e nem cabeça. Sem eira e nem beira!
Soube que, quando tentou fugir, colocaram-no de castigo num chiqueirinho e meteram calmante na sua goela! Enquanto esteve internado, fiquei doente e emagreci oito quilos. Passei a visitar o cemitério da Quarta Parada todas as tardes, para acompanhar os velórios. Sentia-me muito só. Blasfemava contra Deus e dizia que o ódio devorava tudo por dentro. Como não tinha ninguém por mim, criei um amigo invisível, e com ele conversava todos os dias; falava-lhe sobre as minhas angústias, e ríamos juntos da própria sorte! Aquele personagem mirabolante que havia criado nas férias escolares...
— Hapiá, meu duende camarada. E agora, hein?
Andava sem rumo pelas ruas de São Paulo e, se tivesse mesmo coragem, teria sumido do mapa. Um dia tomei um ônibus errado e, quando percebi, estava em frente a um hospital psiquiátrico. Resolvi entrar e pedir ajuda. Enfrentei uma fila enorme, enquanto observava com carinho os meus novos companheiros de jornada. Queria ficar como eles, pois eram sensíveis e verdadeiros. O mundo não nos merecia e, quando mais precisamos de apoio, ele nos desamparou, porque não fazíamos parte da igualdade.
Éramos diferentes! Depois da consulta, fiquei aguardando atrás das grades da farmácia, apenas para pegar os remédios.
Ainda não tinha completado 17 anos de idade, mas tomava um comprimido de Haldol após o almoço e já não tinha mais vontade de viver. Não porque ele tinha enlouquecido, mas porque tinha me deixado. Passava o dia dormindo, sem falar com ninguém. Havia me transformado numa viúva de marido vivo. Ainda de madrugada, saía andando, de pijamas, pelas ruas, totalmente descabelada. Parecia um zumbi. Eu estava em estado de putrefação, e pedia ajuda com os olhos; afinal, precisava de alguém que pudesse amparar a minha dor. Eu também era uma criança, e estava perdida no escuro. Passava horas olhando pelo buraquinho do muro, mas a janela do quarto dele permanecia trancada.
Foram tempos difíceis e de solidão. Todos os meus amigos também diziam que ele era louco, e fiquei sozinha comigo mesma. Dessa forma, fui me acostumando a não ter ninguém. Que se danem, todos! Arranquei as pessoas da minha vida, de uma maneira repentina e grotesca. Não precisava mais de apoio nenhum.
Precisava viajar pra bem longe daquela gaiola das loucas, subir até a lua e despencar no abismo do esquecimento total.Acordei a noite com o pranto engasgado na alma enquanto minha mãe ouvia o meu chororô.Foi até a minha cama e choramos juntas:
- Esquece este moço. Pede á Deus que tire esse fardo da sua vida.
- Eu não acredito mais em Deus, mãe.
- Jamais repita isso, minha filha. Ampare-se Nele!
Bendita rua maldita! Eu não queria vê-lo nunca mais para não sofrer também.Não aos travesseiros molhados.Não ao ódio.Não a nós mesmos!
Então, resolvi fazer uma oração e pedir ajuda a Deus. Era o único amigo que me restava, e uni as mãos numa prece simples, mas sincera: “Pai, me ajuda! Não posso esquecê-lo, porque o amo. Não posso abandoná-lo, porque sou leal ao nosso amor. Conforta o nosso coração e nos dê forças para aceitar tudo aquilo que não pode ser mudado. Eu confio em Ti. Amém!”. E, numa terça- terça-feira da sorte, acordei logo cedo com uma
música linda que vinha da rua:

Felicidade/brilha no ar/como uma estrela/que não está lá
É uma viagem/doce magia/uma ilusão/
que a gente não espera viver um dia.” — Fábio Jr.


 

Abri a janela do quarto e percebi que o som era da sua casa. O que estaria acontecendo? Subi no muro já descascado pelo tempo, e os nossos olhos se reencontraram, após tantos desencontros.
— Silmara, eu voltei... pra você, querida!
— Você sabe quem sou eu?! Sério?
— Você acha que eu vou esquecer a menina mais linda da cidade?
O tempo parou como por encanto e os longos meses de solidão não passaram de algumas horas de distância. Meu Deus, não era mais um vulto da minha imaginação.Estava ali, o louco mais lindo do mundo! Abri os lábios numa prece de agradecimento e pude escutar o barulho do seu silêncio. Eram olhos de tristeza e de alegria ao mesmo tempo, misturado com muitas saudades.E jurei em pensamento que nunca mais o abandonaria, bendito fosse o teu nome! Ele não tinha fim e nem fundo. Comportava-se como um plebeu, mas era divino e não sabia.
Era o dia do seu aniversário (10 de maio), e a Mooca estava em festa,
porque o seu filho querido havia regressado, como quem volta de uma longa viagem.
— Fábio, é você mesmo? — pulei de alegria no seu colo. — Deus não nos abandonou. Eu confio em Ti, Senhor! Obrigada! — chorava de alegria, com as mãos unidas numa prece, sem que ele percebesse tamanha devoção.
— Torturei tanto os médicos que eles me deram alta, sua boba! Vim aqui
te convidar pra ir a minha festa. Eu disse que hoje apresentaria a minha namorada... Você!
Os vizinhos se aglomeravam ao seu redor, querendo saber as novidades.
“Fábio voltou! Fábio voltou!” — gritavam, mexericando. “Ele tá bom de novo. Conversa com a gente, Fábio. Olha só, ele tá curado!” — e o salpicavam de beijos. “Ah, Fabinho! Deus cuidou de você”. Ele me ofereceu o braço, e entramos pelo corredor da sua casa, onde estava toda a família reunida. O churrasco comia solto, e tinha chopes à  vontade.
— Quer ser minha mulher? Depois que você ficar rica com seu livro, é claro.Vou viver só na mordomia!
— Quero ser qualquer coisa, desde que não se esqueça de mim! —
— Pra quem não conhece, esta é a Silmara, mãe dos meus futuros filhos.
E todos nos aplaudiram, gritando um “viva”, e cantando em coro músicas
de Bezerra da Silva. Eu nem estava acreditando. Parecia a realização de um sonho impossível.
Só que a loucura era uma amante vingativa, e tinha ciúmes do nosso amor. Logo, ele começou a vomitar e ter convulsões por causa dos medicamentos.
Suava em bicas e tinha muita febre. Então, resolveu abandonar o tratamento de vez. “Sem chance!” — resmungava. “Fábio, não toma mais nada.” — eu dizia. “Você tá piorando cada vez mais”!
Eu fui a principal culpada pela sua recaída, porque o incentivei a parar com todo o tratamento diversas vezes. “Sou um fracasso, e vocês são os culpados. O meu sangue é podre! A minha cabeça é demente!” — gritava. “Sou um verme da sociedade! Um idiota! Colocaram o meu nome na boca do sapo...” Em pouco tempo, teve outros surtos, sendo encontrado na rodovia Rio–Santos, faminto e com os pés cheios de bolhas de tanto andar. Quando tinha momentos de lucidez, chorava e escondia o rosto no travesseiro. “Eles me trancaram num lugar de louco porque sentem vergonha do que eu sou. O difícil não é entrar num hospício; é sair. Ele vira uma assombração que te persegue por toda a vida! As pessoas cobram de você que seja normal, que fale bonitinho... Que seja uma marionete da sociedade. Porque qualquer novo deslize, ‘craus’! Internação! Chiqueirinho! Choque elétrico! Eu não consigo pensar direito, Silmara. As borboletas voam com um cordão de prata e somem no horizonte... Nem sei mais o que estou falando... Tudo vai dar certo. Eu vou melhorar! Você cuida de mim? Só tenho você.”
Era muita responsabilidade para mim, e cada hora pensava de um jeito diferente: “Acho melhor tomar os remédios. Sei lá! Tenta... Quem sabe melhora?” Então eu pegava um punhado deles e misturava na vitamina. Em seguida, ele tinha tremedeira e mijava nas calças. Depois ficava nervoso, socando os móveis da casa.
- Meu sangue é podre! Eu odeio todos vocês.Odeioooo!
Fábio havia se transformado na piada da rua, porque o ser humano é
impiedoso e não aceita as diferenças. Estava gordo, barbudo e era ridicularizado por todos. Passou a dormir num quartinho de empregada, no fundo do quintal porque se sentia excluído da família e da sociedade, que exigia que ele fosse o mesmo Fábio de antes, mas não era.

“Quero me afogar nesta chuva imensa que cai dos meus olhos.Quero me embriagar até que alguém me dê um quarto, um emprego e um amor.O seu amor!” (maio/1984)


 

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