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Não  lembrarei nem de mim...

Fui  logo cedo na  fábrica rebolando com uma xícara de café  com leite na mão.Pulei em cima de um fardo e me sentia feliz ao seu lado.Éramos muito parecidos até mesmo fisicamente.
- Você tem medo de mim, Fábio? Acha que posso te agarrar assim, do nada?
- Não tenho medo de você.É só uma sensação assim que sobe, sabe.Fico acanhado.
- Acanhado ou assanhado?
- Você é uma caixinha de surpresas...
- Fica comigo.Me assume.Vamos ter nossos dois filhos: Raphael e André.
- É difícil assumir.Eu não posso.Sou doente,Silmara.Você quer que nossos filhos tenham esse sangue podre? Você é louca!
Abaixamos a cabeça e eu chorei.
- Fábio, quando você se casar vai dizer pra sua mulher que tinha uma louca que tentava te beijar o tempo todo? Uma louca que te amou desde o primeiro instante que te viu na vida? Que tinha uma maníaca sexual, ainda virgem,  que te jogava no meio da cama e que te devorava com beijos no rosto?  Que te esperou por muitos dias e noites sem fim...Vai ao menos se lembrar de mim? Desta humilde idiota que te ama mais do que tudo?
- Não sei. Não sei se lembrarei de mim!
Aquela fábrica ficou pequena para nós dois.Para tanto medo...e tanto amor.
- O tempo passa e talvez não exista Raphael e nem André.E você vai sentir saudades de tudo isso, Fábio.
- Por que você diz isto?
- Porque a gente não vai existir pra eternidade.Um dia, tudo acaba.Chega.
Atirei a xícara no chão deixando o café escorrer pelos fardos.Estava perdendo as forças e a esperança de me completar com aquela metade tão rude; tão brusca e tão distante.

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Fui atropelada por uma bicicleta enquanto jogava vôlei  e rasguei o  couro do joelho.Engessei a perna e fiquei esperando uma visita especial: a sua visita.Eram noites de suplício e de uma longa espera.Procurava entre as roupas do varal e não via nada.Havia me abandonado novamente.Estava perdida no meu galinheiro mobiliado.

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Após três meses de saudades toquei a sua campainha quase meia-noite.Era festa junina e poderia estar numa quermesse qualquer, mas preferi implorar por um regresso.
Apareceu no meio da escuridão da sala, sozinho naquela imensidão de móveis;
- Quero apenas os meus bens de volta.- rosnei.
- Como assim? Que bens?!!!
- Meu anel de ouro que deixei aqui.- inventei – Ele tinha dois rubis.
Sentei-me nos pés do sofá enquanto ele procurava pelas gavetas.Entregou na minha mão uma presilha vermelha; um grampo enferrujado; um bob velho; um cinto dourado...
- Esse anel de ouro era dourado? – brincou.
- Não, era enferrujado.Sem graça.Aposto que já derreteu pra revender, né? É a sua cara.
- Quando eu achar, te levo pessoalmente.Boa noite.
Nisso abriu a porta da sala me convidando para sair.
- Boa noite.Me dá um beijo...no rosto.É comum quando pessoas elegantes se despedem.
- Tudo bem.Sem problemas.
Um beijinho na bochecha direita.Outro na esquerda. E um bem no meio!Era meia-noite.Pronto.Desencantamos!
- Fábio, aonde está a sua mão boba que não estou vendo?
- Tá aqui...no bolso da calça.
- Mas cadê a sua calça?
- Tá ali, caída no chão - soltou uma gargalhada.
Achei a maior graça e ficamos assim grudados até de madrugada.Dançamos sem música e me levou de cavalinho pelos corredores da nossa futura casa.Tinha pena dele e de mim! Depois pulei o muro para  que meus pais não desconfiassem de nada.Dormi feliz, muito feliz, com idéias totalmente pecaminosas.

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A chuva caia lá fora e estávamos dentro do caminhão ouvindo música.Nossas tardes eram todas assim e só procurava por outras mulheres quando tinha fome e sede.
Foi tirando a minha blusa com os dentes e fiquei só de sholtien e calça de brim.
- Pelo amor de Deus, eu sou moça.
- Eu sei.Você não queria tanto?
- Era brincadeira!
- Confia em mim!
- Eu não quero mais...Por favor.
- E eu não quero que você saia de casa.Tá ouvindo? É perigoso.
Eu só balançava a cabeça concordando.
- Agora você vai ser minha de verdade.
Ai, que medo! Lembrei da cara do meu pai, dos discursos da minha mãe, da famosa Bete...Não poderia ser igual a ela.Coloquei as duas mãos por cima do zíper rosnando:
- Aqui não entra nem vento.Eu te mato se chegar perto.
Arregalou um sorriso bobo.
- Perdão. Sério.Perdão.Esquece.O seu pai me tira o couro! Você não é disso.É minha santinha!
Barulho de zíper se fechando.Barulho de porta batendo. Barulho de gente chegando .Que alívio! Tava perto o grande dia.

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Da minha casa eu pude ouvir gritos que vinham lá de fora. Era madrugada e até a minha mãe se assustou com tamanho barulho. Logo cedo a vizinhança comentava o ocorrido desde o açougue do Sr. Antero até a quitanda da Delma.
- Fábio bateu no pai.Tá louco de novo.
Como assim? Parecia tudo bem.Seria a falta do remédio? E agora?

“Meu Deus, me dê a oportunidade de recarregar positivamente seus poros e me diluir em vibrações luminosas, preenchendo o vácuo que existe no seu pensamento”. – orei.

Precisava ver de perto o desastre que aquele terremoto havia causado e quando cheguei para tentar ajudar sua mãe, me disse que ele havia quebrado as cadeiras, mas que dormia naquele momento.E eu, como dormiria depois desse rombo avassalador? Me afundei no travesseiro roendo todas as unhas.Se fosse outra crise?
Subi os degraus de dois em dois.Ao me ver sentou-se na cama e fingiu que lia um jornal velho, de ponta cabeça.Silêncio.Quinze minutos e nem uma palavra.Dei um murro na parede só para abrir a conversa.Encarei sua fuça safada e mandei um pontapé  nas páginas bandidas.
- TÔ de enfeite, moleque?
Ai começou a cantarolar.Acendeu um cigarro, sorrindo.Dei  outro pontapé certeiro com a ponta da minha bota de couro.O toco grudou no teto.Eeeee!
-  Você pensa que sou peteca, sua? Que história é essa de quebrar tudo? Bateu no pai...O que é isso.Você ta se transformando num monstro.E se eles te internam de novo? Você acha que vai pra Clínica de bacana.Ah, vai sim.Vão te colocar no porão do  xadrez do terceiro mundo.
- Tô cansado de ser louco.Louco daqui, o louco dali.O fumeta...o idiota...O meu sangue é  ralo.O que você acha? É ralo, Silmarinha, ou não é? Você que é a nossa psicóloga de plantão.
Foi andando em minha direção e apertou a minha garganta:
- É ralo e você vai ficar com outro que tenha sangue azul, né?
Chupou o  meu pescoço e bateu  a porta na minha cara , me atirando no corredor.
- Depois a gente conversa, lindaaaa.
Estava começando a ficar agressivo comigo também. Tirei o batom do bolso e escrevi no espelho do lavabo: - eu  te amo do jeitinho que você é!

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Assistimos um vídeo erótico na sala da sua casa com toda a galera da rua.Eu estava me sentindo incomodada com aquela situação.Fez um sinal para subirmos para o quarto.Nossos corpos escorregaram no suor úmido .Eu gelei por fora e esquentei por dentro.
- Moça, hoje eu vou te fazer mulher!
Sacudi o pescoço negando. Fui recuando e ele em cima de mim.Rodopiamos aqui e ali.Levantei o braço procurando algo quer pudesse me puxar para o teto.Tinha medo dele.Dávamos dois passos para frente e dois para trás.Enverguei as costas em uma pirueta.Encaixei o corpo no vão do armário  e abracei suas costas, tremendo.Tremendo ou gemendo? Estremecendo.
Quando abri os olhos só vi os cabides enroscados no meu cabelo. Sorri moído e dolorido.Jogou-me na cama e grudou feito um bicho violentamente dócil.
Grudei na sua gola, sussurrando:
- Fábio, não. Por favor.
Enxugou a testa  suada com a ponta da fronha e dormiu aconchegado no meu colo.Parecia que estava morto de cansaço e roncava muito.Acordamos de madrugada com o som que vinha da rua.Eu tinha que ir embora antes que clareasse o dia e alguém lá de casa percebesse a minha escapada fogosa.Sorrimos felizes por estarmos ali, grudadinhos naquele quarto de solteiro que abrigava um casal sacramentado pelo pecado da luxuria.
Ficamos  sérios ao mesmo tempo. As mãos estúpidas percorreram os corpos, nos corrompendo e nos violando também.Que sacrilégio.
- Fábio, pára.Somos irmãos.Lembra?
- Isso é mentira.Você é minha mulher.
E não teve mais piedade. Pum! Dei um grito tão forte que rachou até o teto.Ele me abraçou forte e eu chorei.
- Pelo amor de Deus, eu te odeio. O que você fez comigo?
Me encarou, calmo.Acariciou o meu rosto com a ponta dos dedos, me remedando:
- Ai ai ai, minha mocinha linda!Ainda não fiz nada.Juro.
Sai da cama procurando algum vestígio de sangue pela roupa. Pulei os degraus.Pulei o portão e depois o muro e me perdi em lágrimas do arrependimento.Ainda doía .Ele era um vadio.Será que ainda era virgem? Não saberia responder. Não senti colocar alguma coisa dentro de mim.Eu não vi.Não olhei para baixo porque tinha medo daquele “trabuco cabeludo”.
Agora ele  me desprezaria como qualquer homem machista, porque para ele deveria ser mais uma na sua cama .Então sumi de sua vida antes mesmo que me desse um bota fora!

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- 04 dias separados.Vai ser bom.
- 05 dias...Ele é nojento .
- 06  dias...Para mim já era.
- 07 dias...Não faz um pingo de falta.
- 15 dias...Tô doente.
- 20 dias...Morri.
- um mês...Último suspiro.

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