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                                      O fubá estragou

Na época da Copa do Mundo, fazíamos bolão, e quando o Brasil perdia um gol, era uma encenação danada! Tinha gente que fingia desmaiar em cima da bacia de pipoca. O Vithé colocava a mãozinha no peito, gritando que estava tendo um enfarte: “Ai, minha Santa Quirupita! Acuda!”.
A Adriana Baptista era a pior de todas. Parecia um saci perneta, de tão atentada. Quando tinha procissão na rua, a mulherada ia de porta em porta, rezando. Então, a Dona Lídia, sua avó, colocava uma mesinha na garagem com algumas imagens de santos. Amarrávamos uma linha de pipa na cabeça de Santo Antônio e depois nos escondíamos atrás da janela, puxando a ponta da linha todas ás vezes em que as beatas diziam “Amém”. Nisso o santo subia, parecendo levitar. Elas gritavam em coro, emocionadas: “É milagre! É milagre!”. Adriana era linda. Tinha os olhos verdes e repletos de vida. Ela se foi um ano depois do Fábio; deixou saudades e muitas lembranças divertidas.
Quando queríamos arrecadar um dinheirinho extra para os doces, pegávamos um gato angorá, todo estropiado, cego de um olho e sem uma perna, organizando uma verdadeira campanha de solidariedade para arrecadar dinheiro para “a aquisição de uma prótese importada”. Bisqüi era carregado no nosso colo, sendo exibido como um pobre gato esfarrapado, fruto de uma sociedade cruel e delinqüente! As vizinhas iam às lágrimas, enchendo as nossas carteiras de moedas e notas de um cruzeiro que, à noite, investíamos na padaria da esquina.
Numa tarde de inverno, fria e chuvosa, jogávamos queimada na rua,
quando a bola caiu dentro da fábrica. Fábio saiu na porta com um canivete na mão: “Eu vou furar esta bola!” — disse, bravo. “Só entrego se a menina mais bonita da rua vier buscar...” — piscou para mim. “Mas na falta dela, pode vir a mais feia, mesmo. Silmara, eu estou falando de você, minha filha!” — brincou. E eu mostrei a língua, fazendo chacota. Quando subi no fardo de estopa para pegar a dita cuja, levei um escorregão daqueles, e ele me amparou com força. Nossos corpos se uniram, e ele me abraçou, sussurrando no meu ouvido: “Não me agarra, menina assanhada!”. Devorou minha boca, na maior gula: “Eu brinco com você porque te amo, sua boba!”.
Tinha quase 15 anos, e foi o meu primeiro beijo de língua; melecado, apaixonado e o mais atrevido e inesquecível de todos. A molecada delirou, aplaudindo e assobiando ao mesmo tempo, na maior zoeira. Quase morri de vergonha, limpando os lábios com a palma da mão: “Cafajeste! Você me paga! Vou contar pro meu pai. Ele vai te arrancar o couro com a mão... Seu nojento!”. Saí correndo, levantando poeira; abri o portão de casa, empurrei minha mãe no quintal, pulei na cama e chorei de vergonha, de medo, de emoção e, principalmente, de alegria!
“Esse tá no papo!” — pensei, dançando de alegria.
No começo daquela noite  já  estava com a noiva no carro e meus passos foram diminuindo como as batidas do meu coração.Acho que morri naquele instante.Pulei na sua cara pedindo que parasse, mas quase me atropelou, virando a esquina. Ele me deixava confusa!
Descabelei-me  toda.Chorei alto.Muito alto.Chutei o chão.Puxei os cabelos e senti a dor da traição inteirinha dentro de mim!
Mal clareou o dia estava na minha porta com uma garrafa de vinho de presente  para o meu pai e  me pediu  em namoro. Começou com aquela conversa mole, dizendo que havia se apaixonado por mim; que depois ficaríamos noivos e talvez, quem sabe, nos casaríamos numa manhã de sábado. Mas meu pai não quis ouvir suas baboseiras e colocou o coitado para correr. Ele nunca deixou que namorássemos em casa, pois dizia que eu era muito nova ficar de enrosco e que Fábio já era comprometido. Então, nem nos olhávamos direito durante o dia e apenas nos encontrávamos  durante a noite.
Aí não prestou, porque toda a vizinhança começou a me difamar, me chamando de “a galinha da madrugada”. Coitada de mim! Éramos muito
envergonhados e cheios de pudor. A sua mão-boba não conseguia passar o sinal vermelho. Você acredita que nunca nos vimos sem roupa, mesmo depois de casados? Sempre difamada pela boca alheia e no entanto era uma otária.​
O que rolava entre a gente não era sexo. Era uma outra coisa, sei lá. Um romance proibido, com um jeito místico, do tipo alma-gêmea. Parecia que nos conhecíamos desde sempre, e quando eu o olhava, tinha certeza de que já lhe pertencia por inteiro.​
Era uma menina cafona, mas determinada e de personalidade forte. Tinha o meu próprio estilo e já fazia moda. Transformei o meu pijama xadrez numa roupa popular, e com ele freqüentava normalmente a feira de domingo. No inverno usava, como acessório, chinelo de dedos com polainas coloridas.​
No começo o pessoal tirava um barato, mas depois minhas amigas também aderiram, e fazíamos o maior sucesso. Eu era bastante conhecida na Mooca por ir à Festa de San Gennaro usando o terno cinza do meu pai. A gente não ouvia falar em computador, e videocassete era um luxo, era para quem tinha muito dinheiro. Tudo era muito caro, e para conseguir comprar minhas “besteirinhas” eu precisava rebolar; vendia sorvetes aos domingos, na arquibancada do clube Jardim Itália. Também fui “muambeira”, sacoleira... Só não fui pistoleira! Sempre com muito charme e bom humor.​
Nossos encontros se tornavam cada vez mais obsessivos, durante mil vezes por dia. Eram nas esquinas, nos botecos, na varanda de casa, atrás das moitas de mamona, nos terrenos baldios... Ele assobiava e eu ia. Ou então, quando estava sozinha em casa, me produzia toda e colocava na vitrola o som de Raul Seixas. Depois gritava do portão: “Tem bolo... de fubá! De fubá, entendeu?”. Dito duas vezes significava que minha mãe tinha saído e ia demorar. Esse era o nosso código secreto! Não se passavam dois minutos e já estávamos de beijos e abraços, no maior LOVE. Mas quando ele gritava, de cima do caminhão: “Silmara, tem bolo?”, e eu respondia: “O fubá estragou. Estragou, ouviu?”, era sinal de perigo.

 

                                             Confissões de Adolescente

Seu signo era touro, e tínhamos o nosso dia de sorte: era a terça-feira.
Não sei por que, mas nesse dia éramos excessivamente felizes. E o dia de azar? Quarta-feira, porque eu sempre me arrependia de tudo o que tinha feito na terça. Ele me fazia tranças no cabelo e idolatrava o meu universo feminino em todo o seu esplendor. Somente homens de verdade conseguem ter o dom de ser sensível, com muita masculinidade. Roberto Carlos conseguia traduzir todos os nossos momentos, e parecia ser impossível viver sem os dois.
Também brigávamos muito, principalmente por ciúmes. Ele era mais descarado, e quando não gostava de alguma situação, armava o maior barraco: “Olha lá a boneca se achando, gente!” – gritava no meio da rua. “Ô, minha filha, se valoriza! É uma baranga mesmo!” — me atirava um rolo de linha na cabeça.
Muitas vezes nos pegamos pelos cabelos, rodando em círculos, aos gritos. Eu era mais vingativa. Podia me trincar por dentro, mas tinha o meu chilique, bem escondidinha. Depois me arrumava toda, como se nada tivesse acontecido, só mirabolando um jeito de dar o troco, com muita categoria.
Um dia resolvi contar sobre a minha origem; aquela história macabra que me perseguia pelos becos feito uma alma penada.Enquanto ele se lamuriava com seus problemas familiares, pedi um tempo pra falar:
- Fábio, eu não sou quem você pensa...Minha verdadeira mãe era uma prostituta e me abandonou num galinheiro.O nome dela era Bete.
Enquanto eu me descabelava toda, ele apenas sorria:
- É mesmo?!Não chora, boba. Eu conheci a Bete.Ela não era nada disso.O pessoal que te contou essa história mentiu pra você.A Betinha era dançarina e ela te esqueceu no galinheiro.Aliás, que não era um galinheiro.Era um quintal que tinha uma criação de galinha, do tipo de uma chácara .Acho até que era a proprietária...
- Quem te falou isto? Seu idiota mentiroso!Picareta.
- Bobinha, ela te adorava...Só falava de você...Silmarinha daqui e dali.
- Sério? Páraaa! Ela morreu.
- Pois é. Ela morreu de saudades ou você pensa que é só Deus que mata??!
Ele era meu pai, irmão, amigo e inimigo; falava mal de mim, me xingava, me detonava, mas era o meu único consolo quando me sentia frágil e carente. “Não chora. Você vai ser uma grande mulher. Quem sabe uma escritora de verdade? Eu acredito em você. Vai ser uma escritora famosa! Silmara Retti, vai ser o seu nome porque estaremos casados! Mas isso não  importa. O mais importante é que você seja generosa, íntegra e honesta com as pessoas e consigo mesma, sem nunca perder a humildade. Nunca, entendeu? Somente assim será feliz, e eu estarei sempre ao seu lado. Quando lançar o seu primeiro livro, estarei lhe aplaudindo de pé. Junto com o seu pai, na cola, é claro. Você acha que ele vai dar o gostinho de me ver com você? Ele vai estar ali só de vela, com um olho no peixe e outro no gato...” — ria.
Ensinou-me a ser mulher e, acima de tudo, humana. “As pessoas são boas; se ainda não são, um dia vão ser. É assim que caminha a Humanidade! Ame muito; todas elas, sem esquecer de nenhuma. O amor cura todas as doenças. Principalmente as da alma. Acredite nisso.Eu te amo.Sempre te amarei!”
Parecia que era de um outro planeta e falava coisas estranhas, sobre generosidade, dignidade e, principalmente, sobre o amor ao próximo. Talvez por ser assim tão frágil, preferiu fugir da realidade do mundo, criando um outro completamente inverso, onde fantasiava a sua própria estória.


" Agora a tarde eu estava de penhuar  no portão de casa quando o Fábio saiu na rua acompanhado por duas meninas.Quase enfartei e uma delas tinha uma tatoo enorme no braço, chamando o meu amor de amor.Como assim?! Que golpe baixo!Eu era tão diferente dela! Seus olhos eram de mulher vivida; pintados e esbugalhados como se estivessem falando um palavrão cabeludo o tempo todo.Não conseguia tirar os olhos deles e principalmente daquela pecadora.E assim saíram rindo de mim.Fiquei esperando o sem vergonha passar de volta.Já estava escurecendo quando ele voltou:
- Seu vulgar .O que você  estava cozinhando com aquela galinhona da encruzilhada? Eu te prego a mão na cara, tá ouvindo? Na tua cara e no beiço daquela piranha cabeluda!
- Depois a gente conversa, tá linda? TÔ cansado.Você ainda não entende nada sobre sexo.Quando crescer mais vai saber do que estou falando, tá? Beijos, linda.Preciso repor as energias.Fica com Deus.- piscou o olho .
E apagou a luz da sua garagem me deixando no escuro.
Tem um carinha aqui na rua que só anda de terno e ontem ele me entregou um bilhete estranho.Quando comecei a ler, virou as costas e saiu andando.Estava escrito que eu era ainda muito criança, mas que estava apaixonado por mim e que iria me esperar o tempo que precisasse.Haaaaaa, como assim?Viva, ele surgiu no momento certo e seria o meu "namoradinho" de araque.Saca só:
- Fábioooooo. Sei que somos amigos há muito tempo e eu queria te pedir um favor.É coisa de mano pra mano.
- Eu não tenho grana.Meu pai não me paga nada aqui.Nem um pirulito! Mas no futuro já tenho o meu garantido.
- Ótimo.Que bacana.Fico feliz por você, mas enquanto este dia não chega, me escreve uma carta de amor?
- Uma carta de amor pra você?! Silmara, eu sou um rapaz comprometido, não viu a minha noiva?! Cê ta louca!
- Eu quero que você e ela se rachem ao meio de tanto sexo! A carta é de amor, mas para o meu amor. Seguinte: estou apaixonada por um alguém aí e preciso me declarar de um jeito mais romântico.Como você é estudado, pensei que poderia escrever para mim.E nisso mostrei com o dedo o portão da casa do azarado:
- O meu pretendente mora ali, entendeu? Ele já tá na área, tá?  - pisquei um olho- Com ele o buraco é mais embaixo. Se liga!Tá na cola! Marcação cerrada...
- Como assim? Não tô entendendo nada.- coçou a cabeça.
Coça a cabeça mesmo, querido. É que o galharda  já tá vindo com tudo.Pensei- Aff, deixa quieto.Você é muito lerdo mesmo! Caracaaaa!



 

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