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A rua encantada

 

Aquela rua parecia encantada em cada detalhe, e tudo era encaixado perfeitamente, como num poema lírico que emanava da alma dele. Sempre que eu o via, uma música romântica soava de algum lugar, com versos e rimas que falavam sobre nós. Nós?! Como assim? Na verdade, aquele romance secreto era apenas fruto da minha obsessão e imaginação; era um amor fulminante, enlouquecido e totalmente platônico. Acho que nunca percebeu nada, porque eu disfarçava o máximo e tentava ser indiferente, como se ele fosse um pé de chuchu seco. “Somos apenas amigos.” — era o que respondia para qualquer um que quisesse bisbilhotar. Fábio já tinha uma noiva linda e maravilhosa, toda tatuada, e que eu odiava do fundo do meu coração. Com ela tinha beijos de língua, transa no meio das estopas, um papo “legal”... e sexual. Para ele, eu era apenas uma menina do interior: engraçadinha, um pouco sonsa e de longas tranças escorridas pelo ombro. Para mim, ele era tudo e muito mais! Eu deveria ter lhe falado sobre o imenso amor que me consumia por dentro; sobre aquele monstro devorador que carregava dentro de mim, me fazendo rolar na cama durante as longas madrugadas de primavera, verão, outono, inverno... Mas ele já se foi e nunca soube que quase morri quando  também morreu.

             

Querido diário, hoje cedo Fábio chegou em casa e parecia drogado.Um vazio imenso me dominou a alma e lhe servi um café bem  quente.Fazia caretas e enxergava um barquinho na parede. Ria muito e me balançava pra lá e pra cá.
Encostou-se na parede e chorou numa gargalhada medonha.Via bicho, muito bicho.Só não via a minha tristeza e a minha dor.Estava perdendo você para algo desconhecido.Droga ou loucura? As pessoas aqui da rua falam que ele toma bola...Bola??!!?” 

  

 

No final da tarde sentávamos num fardo de retalhos e passávamos horas conversando só bobeira. Eu era muito criança para perceber que ele vivia num mundo completamente irreal e que suas palavras não tinham muito sentido. Ele acendia um “Derby suave” e tragava, fazendo bolinhas de fumaça no ar. Fábio tinha coragem de me falar sobre sexo, drogas, desejos, tesão, paixão, mas dum jeito só dele, porque não era um mundo de verdade. Para ele, não existia ninguém ruim, e todas as suas histórias tinham finais felizes. O seu universo era cor-de-rosa e feito de açúcar. Dizia: “Tá louco, meu! Escorpião é o signo de mulher-macho; daquela bem bigoduda! Quando você crescer e se apaixonar, vai ser um perigo! Aí eu vou ter que andar com uma espingarda debaixo do braço.” – fazia suspense: “Pra proteger os caras da sua fúria, minha filha! Eles sim vão precisar de guarda-costas.” Dava duas tragadas, pigarreava e comia as unhas. “Nada de andar com a molecada pra lá e pra cá, hein! Isso é coisa de... sirigaita. Desse jeito vai ficar encalhada, meu. Encalhada e difamada! Ou você acha mesmo que um homem de família vai querer se casar com alguém tão rueira como você?”
Contava com detalhes suas aventuras mais loucas, aquelas sem pé e nem cabeça, e eu apenas ouvia, chupando pirulito, totalmente paralisada diante de tamanha beleza.
“Este homem é meu” – pensava com os meus botões.
Nem sei se era tão bonito assim. Eu nunca soube o que realmente era. Só sei que ele não foi comum, pelo menos na minha cabeça pirada, repleta de devaneios. Era muito mulherengo e se apaixonava fácil. A porta da fábrica chovia de broaca assanhada atrás dele, e eu queria morrer, atirando a bola de capotão bem na cara delas.
“Foi mal. Desculpa aí” — ria, com cinismo.
Ele parecia um integrante do grupo musical Menudo. Isso mesmo, pois secava o cabelo chanel com um secador portátil e rebolava como os Bee Gees em frente ao espelho. Tinha um corpo definido e bronzeado, porque carregava o caminhão de estopa todos os dias, embaixo do sol do meio-dia. Com o seu pai não tinha “boi”, pois ele lhe tratava como um escravo, sem direito a pagamento. Aliás, esse era só um detalhe. Ele tinha a maior lábia: dizia que Fábio era “quase” proprietário e, sendo assim, não precisava de dinheiro, porque estava investindo no futuro. Talvez o que tenha me deixado tão devota de Fábio era a grande admiração que sentia por ele... Quando ouvia a sua voz, o meu peito explodia por dentro, e eu não conseguia falar.
Minhas mãos gelavam, o corpo tremia como se tivesse mal de Parkinson, e me comportava como uma verdadeira idiota, guardando numa caixinha de madeira as bitucas do seu cigarro.
Parecia uma doença, que não me deixava dormir em paz e nem comer
direito. Eu tinha febre de puro ciúme, mas não conseguia me declarar. Pelo contrário, fingia o tempo todo que ele não tinha valor algum. Por mim, que se deleitasse com todas as rechonchudas da Mooca, que nem me importava (até parece)... Azar delas, porque um dia se casaria comigo. Eu sim seria a sua patroa. A poderosa Rainha do Lar!
De repente, a natureza resolveu ser camarada comigo e me presenteou com par de peitos que pareciam um airbag tamanho família e eles inflaram, furando os olhos de quem passasse na minha frente. Era uma mulher totalmente realizada: tinha sala para as visitas e tetas para o delírio da galera!
Logo cedo, já estava debruçada no muro, toda produzida, com um batom uva-choque pregado no beiço. Trocava de roupa de meia em meia hora e fazia limpeza de saltinho e mini-saia. Quando ele estava descarregando o caminhão, eu descia e subia a rua trezentas mil vezes por dia. Nem olhava para trás, mas a perna até tremia! Para você ter uma idéia, o meu café da manhã era tomado na calçada. Lá, eu estendia um pano de prato e ajeitava no canto o pão e a caneca de leite quente.
Uma vez por semana, ia buscar matéria-prima num armazém, e logo cedo eu aproveitava para varrer o quintal, recolher o lixo do portão e tirar o pó do muro. Isto mesmo: se pudesse, limpava até o esgoto da rua, e só saía dali quando o caminhão voltava, mais ou menos às onze e meia, um pouco antes do almoço. Todo aquele sacrifício era apenas para ouvir da sua boquinha de torresmo: “Que menina prendada!” — e eu revirava os olhinhos, agradecida!
No verão, todas as meninas da rua viajavam para Santos, enquanto eu tomava sol de sutiã no quintal de casa, esticada como um barbante ao lado do tanque de roupas, de óculos escuros e toda besuntada com manteiga, para dar aquele bronze natural. Tudo era tão simples e tão bonito! Merecíamos toda a felicidade do mundo, com direito a sandália melissa cor fumê, cabelo “pig maleão”, músicas do Clube do Rei, calça “cocotinha”, corrente Pierre Cardin, sapato mocassin, franja francesinha, saia balonê, domingueiras no Juventus, bailes no Asteróide, pizza no Bonanzza, geléia de morango no bar do Seu Adelino, frango assado no açougue do Antero, banho de piscina no Clube da Mooca...
Naquela época, tudo era muito diferente de agora. Nossos ídolos eram o Super Dínamo, o Jaspion e o Speed Racer. Assistíamos ao Sítio do Pica- Pau Amarelo, ao Zorro, ao Homem do Sapato Branco, ao Flávio Cavalcanti,à “Buzina do Chacrinha” e à “Ilha da Fantasia”. A mulher mais gostosa era Jane Fonda. Droga ligth era lança-perfume. Sexo era transa. Beijo era ”bitoca”. Bunda, “buzanfa”. E para a menina ser “boazuda”, não precisava malhar. Aliás, ninguém falava em academia de ginástica. Se ela tivesse “tetão”, enlouquecia até os postes. Quando “pintava um clima” no ar, o menino tomava a iniciativa, pedindo a bonitona em namoro. Aí, ela exigia um tempo para pensar, e esse romance virava uma novela mexicana, com direito a platéia.
Depois, os dois conversavam em segredo no final da rua, e a molecada delirava, fazendo torcida. Logo, os “periquitinhos” do amor passavam a andar de mãos dadas pela vila, com cara de bunda. Só abriam a boca para se beijar, grudados no muro da casa da namoradinha, com o pai dela sentado na cadeira de praia. Chupavam sorvete de pistache, ouviam som na garagem, gravavam fitas dos Beatles, jogavam videogame, faziam tarefa da escola, davam um “rolê” até a Avenida Paes de Barros e no final de semana viajavam com a nova família para Santos, enlatados dentro do carro. Se a moça fosse filha de operário, era uma Variant velha, uma Brasília vermelha, um Fuscão preto ou um Corcel dourado; se fosse filha do dono da padaria, era um Monza conversível; já a filha do bicheiro, era um Landau Lux cor azul marinho,matando todo mundo de inveja, do tipo “O Poderoso Chefão”!
Depois, namoravam por mais uns oito anos, mandavam convites para a festa de noivado e, após séculos e séculos de um relacionamento chocho e totalmente desenganado por amigos e familiares, alugavam um salão no Alto da Mooca, para o enlace matrimonial. Após algum tempo, curiosamente por volta de seis a sete meses, nascia o primeiro filho, que diziam ser “prematuro”. A maioria das meninas da minha turma, já havia concluído o Magistério e lecionava na escola Plínio Barreto, enquanto alguns rapazes cursavam Administração de Empresas na Faculdade São Judas Tadeu, com o baile de formatura agendado para o final do ano no Clube Atlético Juventus. Mas comigo não foi assim. Foi assado! A minha festa de casamento foi um circo, com toda a italianada chorando  de emoção, enquanto o próprio noivo chorava de raiva!

 

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