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                            Perninha de Pinóquio

Depois de alguns anos de tratamento, aconteceu uma coisa muito ruim.
Comecei a reparar que minhas pernas estavam ficando finas, e o pessoal me chamava de “Pinóquio”. Que droga seria essa? Fiz que fiz, que comprei uma bicicleta ergométrica. Não resolveu nada. Nunca gostei de praticar exercícios, e levava uma vida sedentária. As minhas pernas haviam se transformado num “bicho-papão” para mim. Alguns riam, dizendo: “Pula, sabiázinho, pula!”. Eu ria junto, mas sentia que algo estava estranho. Aquelas pernas não podiam ser de gente, não senhor! Pareciam pernas de mosquito!
Passei a usar, somente, calças compridas. No verão, era uma tortura.
Cozinhava viva, mas agüentava firme. Quando perguntavam o motivo de tanta roupa num calor daqueles, dizia: “Sou muito conservadora. Gosto de atrair pelo mistério.”Que mistério mais terrorista! Isso mexeu com minha cabeça, e comecei a ficar doente de tristeza. Não sabia o nome daquela praga. Só podia ser um efeito nuclear, uma bomba de Hiroshima camuflada, um
ácido devastador... Pensava: “Ah, neste angu tem carniça!”. Mas eu ia descobrir... E descobri!
Numa tarde ensolarada, encontrei Tom Blasques , que naquela época era psicólogo da equipe de DST/Aids, e ele me convidou para trabalhar com eles. Fiquei muito feliz e, depois de alguns meses, já estava na equipe. Dra. Graça Gil era a coordenadora, e fui muito bem recebida por todos.  Só que, no primeiro dia de trabalho, quase enfartei, pois estava frente a frente com muitas realidades que faziam parte da minha, também. Aqueles outros que antes, para mim, eram apenas os outros, passaram a ser companheiros, com nomes, caras e histórias. Não pensem que foi fácil! Abri o berreiro, sozinha num canto; mas precisaria encarar a realidade, mais uma vez. Temos companheiros de diversas idades, cores e nacionalidades. São pessoas de carne e osso, que também dão risada e se divertem. Tem aqueles que se cuidam, outros nem tanto... A adesão ao tratamento sofre fases de altos e baixos, pois o paciente que adere hoje pode desistir  amanhã. Eu mesma não posso responder se, no ano de 2015, estarei de comum acordo com o tratamento. A adesão é uma atitude quase diária, como acontece no AA (Alcoólicos Anônimos). É uma beleza aderir a um tratamento à base de sorvete, bolo de chocolate e bala de amendoim! Ah, se todo remédio fosse um brigadeiro... Mas não é. Às vezes, tem até gosto de enxofre estragado. Inheca! Mas, naquela época, eu estava 95% aderida, com os frascos exibidos sobre a mesa, para quem quisesse ver. Falava com a boca cheia: “Vou tomar o meu remédio já! Mire o exemplo... Babe de inveja! Servido?” — e mandava goela abaixo, sorrindo, só para “abalar”.” O acesso gratuito aos remédios é uma conquista brasileira, e eu achava um absurdo alguém não aderir a um tratamento tão poderoso. Até que, de repente, caiu na minha mão a revista Saber viver, com uma notícia bombástica na capa: “ARVs e a lipodistrofia”. Nossa, o que era aquilo? Meu “nego”, era isto, aquilo e muito mais! Vi uma canelinha igual a minha estampada na página principal, e comi a revista com os olhos: “Então, é isto que eu tenho!”.
Olhava para a foto, para a minha perna... Era o encontro da minha canelinha com a prima distante. Desabei. Não tinha quem me segurasse. Caí de cara na depressão. Pensei: “Não vou mais tomar, pronto!”. O certo é que eu deveria ter feito exercícios físicos, mas nunca quis saber de nada. Tinha uma preguiça de doer!
Eu acho que os possíveis efeitos colaterais dos medicamentos devem ser explicados ao paciente, com sinceridade e clareza. Merecemos saber tudo, porque a confiança e a sinceridade estão incluídas na adesão. E que cada um faça a sua parte!  Cada um tem o seu limite e sabe onde dói o seu calo. O meu estava ali. Havia suportado um monte de coisas, mas a canela fina, para mim, foi a morte! E a figura de paciente 95% aderida já era coisa do passado, tipo bos-
sa-nova, Clube do Rei, Estúpido Cupido, Carmem Miranda, US Top, Mister Magoo, Mappim, Vila Sesámo... Pensei: “Desculpa, mas parei por aqui. Vou descer do bonde agora!”. E
desci. Fiquei sem tomar o medicamento, por conta própria, durante meses.
Na verdade, não sentia diferença nenhuma, mas só o fato de não estar tomando me deixava leve, livre e solta. Era como se não fosse comigo. Quando passava alguma notícia na TV, dava-me ao luxo de mudar de canal, dizendo: “Isso não me pertence mais!”
E a viruslândia vivia numa balada violenta, com os vírus transando feito loucos, pelo meu corpo adentro... Nada os segurava mais. O carcereiro fora exonerado do cargo, e estavam na mais pura libertinagem! Bando de traíras; eu os hospedava, dava de tudo (casa, cama e mesa), e eles me comiam viva, sem um pingo de dó!
Passei por vários médicos, até mesmo em outras cidades, e alguns afirmaram, com a maior tranqüilidade do mundo, que, com o tempo, eu perderia a firmeza nas pernas. Quase “pirei”. Pensava: “Mas isso não pode ser verdade!
Estava sem medicamento e sem esperança. Um “trapo”! Passava em
consulta normalmente, e Dr. Fernando sempre me cobrava o famoso regresso ao lar. Dizia que não estava de acordo com a minha decisão e que, na verdade, eu nunca deveria ter parado. Pediu os exames de sempre, e lá fui eu coletar, toda charmosa.
Menino, quando vieram os resultados do laboratório, que surpresa! Eu não tinha HIV; era ele quem me tinha. Eu não andava; estava sendo carregada por eles! Pronto, abri o bocão de tanto chorar. Aí, não teve lipodistrofia que me segurasse, e implorei: “Eu preciso tomar o coquetel! Não consigo viver sem ele!”
Nós conversamos muito sobre o assunto e decidimos mudar o esquema
terapêutico, ou seja, passei a tomar outros remédios.E foi exatamente isto que me aconteceu: saí da sala com uma sacolinha de remédios, louca para correr atrás do prejuízo,
sorrindo até fazer a curva. Depois, quase sucumbi de tanto chorar: “Aiiii, eu não quero tomar esta gororoba!”
Voltei a tomar os comprimidos e passei por uma nova fase de adaptação.
A minha cara empipocou todinha, e eu parecia um torresmo à pururuca estragado, daqueles com prazo de validade vencido. Fiquei uma semana “de molho”, e em casa cada um oferecia um pouco de si para que eu pudesse me sentir melhor. Minha mãe ia me ver todos os dias, os meus filhos me cobriam de beijos e Serginho até levava comida na cama: “Vai passar, linda!”
— ele dizia. E passou. Tomava no horário certinho, e numa boa!
É lógico que eu não conto as minhas intimidades para o tio do caldo de cana ou para a tia do Yakult! Nada a ver! Precisamos escolher parceiros que estejam envolvidos com a situação. Não precisa ser necessariamente pessoas da família; pode ser um amigo ou alguém em quem confie. Quando se diz um segredo a alguém, é porque essa pessoa é merecedora da confiança
depositada. Hoje, sinto que não deveria ter parado com o tratamento. Essa atitude
não trouxe nenhum benefício para a minha saúde. Eu poderia ter conciliado os remédios com exercícios físicos, mas a preguiça falou mais alto.
Não pensem que adoro ter perninhas secas; na verdade, o meu sonho de consumo era ter um “tronco de jacarandá” em cada lado. Mas não posso. Agora, para mim, o mais importante é minha saúde. No auge da minha crise de depressão, queria arrancar as pernas com a tesoura de
cortar frango... Tive um chilique! Não sobrou pedra sobre pedra. O tempo fechou para mim, e pensei que fosse morrer afogada nas próprias lágrimas.

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