top of page

Não conte comigo!

Ele  tava entalado  na banheira da sua casa mega pop, quando abri a porta com tudo.
-  Silmara, dá banho em mim?
- Então cobre as coisas.
Ele colocou uma cueca por debaixo da água.Pegou a flauta na gaveta do armário e enquanto tocava, lhe cobria as costas de espuma.
- Eu estava pensando aqui comigo...Você nunca vai ser mãe, né?
- Como assim?
-É que você nunca vai se casar.Eu não posso assumir nenhum compromisso.Não conte comigo.
Engoli aquele caroço de manga a seco.
- Claro que eu vou me casar e vou ter o Raphael e depois o André, com outro, é lógico.Você vai ficar sabendo das últimas novidades por sedex, pois lhe enviarei as fotos da minha família: dum lado os meninos lindos, ricos e poderosos e no canto, o esposo banqueiro, fazendeiro e...
- Muambeiro. – deu uma gargalhada - Você ta louca, né?
- Louca pra te trair.Essa cabeçona  pede um corno.Ah, se pede!
Segurou meus cabelos, puxando meu corpo com tudo para dentro da banheira.
- Você vai ficar encalhada, minha filha.Feia, gorda e velha.E eu estarei aqui, todo garboso só na paquera com a mulherada rica e bonita.Então lhe chamarei para ser nossa mucama.
- Ah, querido.Que decepção a sua, pois vou me casar com você, teremos nossos filhos Raphael e André...vou conhecer um Ricardão e ...ó! Só na tua testa florida.E você vai morrer de desgosto, enlatado na sua banheira dourada, mas infelizmente...só-zi-nho! / profetizei.
Sacudi a espuma do corpo e  fui embora  ainda ensaboada,  enquanto sua mãe enxugava a escada com o rodo.Tadinha, nunca reclamou de nada!

 

%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%5



Briguei com os meus pais e desci chorando para o nosso quartinho.Eles riam do nosso romance e exigia que eu tomasse uma atitude.Qual? Casar...ou separar, de vez.Mas era cedo ainda e tinha muitos sonhos .Então eles me colocaram no gelo e me senti excluída de casa.Ensopei a camisa do Fábio de lágrima, saliva e muita baba.
- Não chora, amoreco. Que futuro o seu, não? Mulher rica, poderosa, letrada, escritora e  cheia de amor para dar! Benzadeus, é o orgulho da dona Bete. Você ta lá no alto e eu aqui, no abismo.Duro, leso e louco!
- E invejoso, né? – fiz figas , rindo.- Fábio, eu sofro porque meus pais não aceitam o nosso relacionamento.Deixa pra lá.Você nunca vai entender e não quero te magoar.
Dançamos coladinhos e comemos pipoca envelhecida há 2 mil anos.Arrumamos um banquinho cativo para eu me deslocar com mais segurança pelo nosso muro.Assim podia ficar até mais tarde e depois cair com tudo praticamente na própria cama.
A sua família  via a gente, mas fingia não enxergar.Eles não queriam incomodar e ficavam só observando o nosso mundo irreal.
Jogávamos vídeo-game no sofá da sua casa em gargalhadas neuróticas.Lembrei-me das suas outras mulheres.Cadê a frangolina? A boleta? A galinha morta? Sei lá, que se explodam!
Morde daqui e belisca dali.Nossa, como ele me traiu! O veneno foi me consumindo aos poucos.
De repente tava lilás de ciúmes e bombardeei:
- TÔ cansada de beijar só você! Enche o saco.Quero variar também.
AHHHHHHH! Que porretada!
- Como assim, variar?
- Você variou tanto, inclusive comigo.Agora é a hora da virada!
- Bonequinha, a única menina que eu gosto é você .As outras já nem me lembro mais.
- Mas  eu nunca vou esquecer.Quero um homem novo.
- Sério? Você não teria coragem de transar com outro, teria? De ficar pelada para um desconhecido? Um tarado que só vai te querer para inheco inheco...Um homem nojento, fedido,  com o pitombo cheirando a queijo podre...Com a boca cheia de cárie e  alho amanhecido...
Quase vomitei.
- É verdade, esse homem já existe e está aqui ao meu lado.- brinquei- Aprendi isto com você e não saberia fazer com outro.Serei sempre sua.O meu coração é seu!
E prometemos amor eterno.
 @@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

Socou o rosto do seu pai e depois pulou o muro peladão enquanto a polícia lhe procurava pela rua.Foram até a minha casa e disse que nem o conhecia direito.
Fiquei desesperada  com  medo que o encontrassem com aquele cassetete horrível. Consegui encontrá-lo escondido atrás de um fardo de estopa.
- Fábio, que bom, meu bichinho!
Estava vestido com  a roupa que roubou do varal de alguma casa.
- Porque fez isso com o seu pai?
- Ele me enganou, Silmara.Eu fiquei doente e não gosta mais de mim.
- E precisava bater nele de novo?
- Eu não fiz nada.Foi um outro rapaz e eu só tentei socorrer.Agora pensam que fui eu.
- Mentiroso.Eu não tenho medo de você, não.
E começou a ficar nervosinho, bufando.
- Não tenho permissão para falar sobre isso, agora.
- Assume o que você fez, criatura.
- Tá bom!Tá bom! Vamos conversar, pepita.Vou lavar a minha mão e já volto.
Silêncio.Sumiu nos corredores escuros da fábrica e por mais que chamasse  nem se movia.Fiquei esperando por ele por mais de quarenta minutos.Chega.
- Fábio, você venceu.Vou embora. Quero que se dane!
Eu não agüentava mais tanta pressão! Vivia cheia de olheiras e sempre de mal humor. Ouvi um tititi  diferente na rua e fui até o nosso quartinho do amor.Ele ficava me esperando todas as noites e dormíamos juntos até de madrugada.Depois pulava o muro e ia pra casa porque trabalhava  no Posto de Saúde da  Vila Maria.
- Fábio, escutei um negócio estranho na boca dos meninos.
- Não fala nada que só pode ser bobeira.
- Eu ouvi eles falarem que eu sou uma...
- Chegaaa! É palavrão.Não abre mais a boca.Eles não sabem nada de você.
- Acho que queriam dizer que eu já tinha ficado com você.Que não era moça.
- Mentira deles.Você ainda é mocinha.Eu não fiz nada.
- E aquela noite? A gente fez amor...
- Esquece.- sussurrava, bravo: - Deixa de ser vulgar.
Vulgar? Beijou o meu rosto tragando o cigarro no ritmo da música:
- Eu sou doente, Silmara.Eu preciso me tratar mas não sei como.Esse Haldol me deixa mais louco ainda.Acho que tenho que tomar um chá.
As minhas lágrimas escorriam e as unhas eram arrancadas sem piedade.
- Vamos dar um tempo.Quem sabe você não encontra um outro rapaz? 
- Por favor...Eu faço o que você quiser, Fábio.Vou ter mais paciência com você.Juro.
- Não precisa se descabelar por isso.Vai dar tudo certo.
- É que sou muito chorona com você, né? É  isso?
- Um dia todo mundo chora. Vou estar sempre ao seu lado, vivo ou morto.Agora chega.Não agüento mais te ver sofrer assim.
Deu um  soco na parede e saiu, me deixando sozinha no nosso mundo depenado.

@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

Minha mãe tinha me proibido de falar com ele e tinha chiliques  homéricos quando percebia que estava por perto.Então comprei o walk –took  todo bacanudo só pra gente se falar dos nossos quintais.Ficamos brincando com ele um tempão cada um na sua cama.
Depois marcamos de ir na liquidação do Brás porque quando foi internado seus pais doaram todas as suas poucas roupas e queria lhe dar de presente uma jaqueta de frio.
Era o dia do meu pagamento e fizemos a festa: compramos camisetas de várias cores, cueca, meia, bermuda e voltamos  com caixas de papelão na cabeça.
- Fábio, não é nada de marca como antes porque não tenho como comprar, mas espero que goste porque estou enjoada de te ver de pijama.
Ele não andava de ônibus mais.Não conseguia ficar muito tempo parado e voltamos a pé do Brás até o Alto da Mooca.Parou na esquina, bufando de cansaço.Ele  nunca caminhou ao meu lado.Sempre ia na frente suando em bicas enquanto eu tentava lhe alcançar.Quando chegava perto, sorria:
- Hei bijuzinho. Vamo nessa!
Bijuzinho uma pinóia.Sai correndo no maior gás do mundo.Atravessei ruas e vielas.Queria que ficasse sozinho com aquele pacote na cabeça.Era o meu namorado; o mais esquizofrênico de todos!

Amo você não pelo que é, mas pelo que me faz ser! – Silmara Retti

%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%


Minha prima Rose comentou que iríamos nos mudar em breve para Ubatuba e meus pais estavam procurando uma casa por lá.Dormia confortavelmente no seu colchão bichado e ao entrar, assustou-se.Eu estava em prantos.
- Fábio, to indo embora desta cidade. Não deixa isso acontecer!
Abaixou os olhos , muito triste:
- Você vai quando?
- Quando??! Você não vai me impedir?
- Não posso.Eu sabia que esse dia chegaria...
- Acho que vamos amanhã cedo.- inventei só para ver sua reação. - Quero tudo que é meu.
- Já?
- Acho que to indo agora.Daqui a pouco...O que você acha disso?
 - Tenho vergonha de te perguntar uma coisa...Posso ficar com o seu walk took?
Desgramado! Meus olhos ferviam de raiva.Interesseiro de uma figa!
- Pode, sim.
- De verdade? Jura? Que alívio.A gente conversa por carta.Vai ser melhor assim.
Eu estava no maior velório enquanto ele se preocupava em ajustar o som.
- É meu mesmo?! Puxa, você é demais.
- Estou indo embora.Adeus! Fábio, nunca mais.Vou para Ubatuba de mudança.É longe pra caramba e a gente nunca mais vai se ver.

- Tá certo! Esse aparelho não é falso não, né? Tem garantia??!!?
Nos abraçamos friamente e eu comecei a chorar, mas era um choro de raiva.Meti o pé na porta e fui embora sem olhar para trás.Ele nem se moveu, trancando o quartinho com cadeado.

%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%

No outro dia seis horas da manhã  estava na minha casa com o walk took pregado na orelha e todo arrumado com as roupas novas que havia lhe presenteado..
- Cheguei a tempo, pepita? Cadê o caminhão?
- Ainda não chegou, por que?
- É que marquei consulta com o psiquiatra e queria que você fosse comigo.
- Verdade?! Claro que eu vou.Só que não posso ir a pé, Fábio.É cansativo.Vamos de ônibus.A gente chega mais rápido.Pode ser?
- Tudo bem, mas você não ia se mudar hoje pra Ubatuba?
- Deixa quieto.Vamos no ano que vem.
Tomei um banho rapidinho e quando vi estávamos indo pra cidade de ônibus.Era uma tortura porque ele não parava quieto um  minuto e eu ficava me justificando o tempo inteiro para os outros passageiros.Saco.Que mico! Segundo ônibus.Custava ter ido de carro? Mas não.Ninguém liberava  a pequenina frota porque achavam desnecessário: a Silmara vai rapidinho com ele.Só que fingiam não saber o quanto era difícil andar com uma pessoa que  corria de você o tempo todo te deixando para trás feito uma sacola velha.
Quando leu a placa  em frente a Clínica, desistiu:
- Psiquiátrica? !!Não sou louco.
- Você sabia, não sabia?
- Mudei de idéia.Vai na frente e fala pra ela sobre mim.Amanhã eu volto.
Fiquei fula da vida.Sacanagem! Nisso a recepcionista chamou por ele e tentou fugir:
- Vamos Fábio, por favor, ela ta louca pra te conhecer...Só um pouquinho, vai.
Entramos na sala luxuosa e cheia de detalhes em miniaturas.Em um minuto Fábio colocou no bolso quase tudo que estava em cima da mesa, até o carimbo médico.
Ela não deu o diagnóstico.Disse que precisava investigar.Perguntou quem eu era:
- Sou sua namorada.
- Sério? O que Fábio tem não é uma gripe, sabia? Seus filhos, se um dia vierem a se casar poderão nascer com o mesmo problema.- Já pensou nisso? Vai entrar com o medicamento e quem vai ser responsável por ele?
- Eu. Se quiser posso tomar com ele para incentivar.
- Você precisa de ajuda, menina.Isso não é uma brincadeira.
Fábio mexia em tudo como uma criancinha malcriada.Eu nem conseguia conversar com a médica que me observava com cara de louca.
- O que você entende de esquizofrenia, garota?
- Nada, mas entendo muito sobre o amor.Vamos, Fábio.
E lhe puxei pelo braço com o receituário na mão.
- Obrigada por tudo., mas a senhora não pode nos ajudar.
Não conversou comigo o caminho todo e para lhe agradar torrei o meu dinheiro com doces e precisamos voltar a pé.




 

bottom of page