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O Começo do Fim

Colocou-me numa poltrona velha da fábrica e me fez deitar em seu peito.Vivíamos  melancólicos como que se prevíssemos um triste fim que estava cada vez mais próximo.O empurrei rasgando seus lábios com as unhas enquanto mordia minha boca.
De repente lasquei um tapa na sua cara. Ele me soltou rápido, mas feroz.
-  Queria te devorar todinha!
Foi andando de costas até sumir de mim:
- Eu te gosto muito e nunca vou te esquecer... Nunca...nunca...
Fiquei sem ação enquanto ele limpava o sangue da boca.
- Mesmo que um dia não saiba mais o seu nome.
- Por que diz isto? Como não saberá mais o meu nome?
-Mesmo que não saiba nem o meu próprio nome, continuarei te amando.Por mais errante o distante navegante, sou aquele que jamais te esqueceria! (letra de Caetano Veloso, seu cantor preferido
- Páraaaaa! Não fala assim. Você sempre será o Fábio e eu a Silmara.Aquela que te amou mais do que a si mesmo.Nunca se esqueça...Tá me ouvindo?
Só que ele não me ouviu e foi embora por muito tempo. De repente, caiu uma tempestade inesperada, e as ruas da Mooca se desencantaram num passe de mágica. Não ouvi mais a sua voz, e ele sumiu por dias. Quase pirei. Eram milhões de horas a sua espera. O nosso mundo havia desmoronado naquela enchente destruidora. E se eu fosse procurá-lo? E se fosse vê-lo, onde estivesse? Esperei por meses a sua volta, só que ele nunca mais regressou, porque resolveu fugir da realidade numa viagem sem fim, escondendo-se atrás de uma doença mental chamada esquizofrenia, ou não? Um monstro cabeludo tomou conta do seu corpo, distorcendo as idéias, deixando-o completamente perdido. Era o começo do fim! Eu o procurava por todos os lugares a que costumávamos ir, deixava recado e mandava mil bilhetes. O seu pai dizia que ele estava muito estranho e que saía logo cedo, sem rumo. Não dormia mais em casa, não conversava com ninguém e havia até mudado de nome.As pessoas diziam que ele estava tomando bola...O seu novo nome era Damião .Caraca, por que??!
Vendi o pouco que tinha para lhe comprar um LP que tinha as nossas melhores músicas, inclusive    ‘All be there”  e pedi que a molecada entregasse na sua casa enquanto me produzi toda. Meus pais haviam saído e fiquei lhe esperando com a minha camisola vermelha em pose de estátua.Talvez fosse me agradecer pessoalmente  e fiquei deitada no sofá como que se não quisesse nada com nada.Eu já estava com dezesseis  anos e já era uma “quase mulher”, com cabeça de ameba! Seria a nossa primeira tarde de amor, a mais esperada de todas só que Fábio não apareceu. Quebrei os copos da pia gritando de ódio:
- Filho da boa mãe! Ingrato! Safadooooo!
Os meus pais chegaram da cidade, indignados com tudo aquilo:
- Você tá louca?- minha mãe me sacudia.
- Me deixa.O que vocês sabem sobre o amor?! Nossa, como vocês se amam, né?
 Bati a porta do quarto, do único quarto e urrava de paixão!
- Um dia eu vou me vingar de você, Fábio. Ah, se vou! Você não me conhece.Vou te matar dormindo!
Passei a noite em claro e no outro dia bem cedo dei um cruzeiro para um moleque ir buscar o LP de volta:
- Você diz assim: a Silmara pediu de volta o presente que te deu, seu gay.
- Chamo ele de bicha? E se me bater?Ele é um armário, meo!
- Não, não precisa chamar ele assim. Deixa que eu chamo.Só eu.
Fiquei andando de lá pra cá. Será que ele entregaria pessoalmente? Corri no espelho e passei um batom vermelho. Coloquei um salto.Uma mini saia...Um...Um nada, porque num instalo de dedos  o moleque voltou com o disco na mão.
- O que aquele miserável te disse?
- Não abriu a boca.Tava muito estranho.Fumava feito um dragão...Ó o tamanho do olho dele...Parecia que ia explodir!
- Não disse nada, é?Espera aí, então.Ele ta lá naquele mocó trancado?
Fui até a vitrola e aumentei o som no último volume para que pudesse escutar do seu quarto.Eu chorava e ria ao mesmo tempo.Depois arranhei com as  unhas frente e verso do disco.Deixei todinho riscado em forma de X e Z.Cuspi em cima.Cortei o dedo  com uma lâmina tatuando as nossas iniciais com o sangue derramado na contracapa do disco.
Limpei as lágrimas com o braço.
- Volta lá e manda ele enfiar este disco no...no...loló!
- Ah, não vou mesmo.Você é pior que ele, “meo”.Louca varrida!
Mexi no bolso do shorts e não tinha mais um tostão.Tirei uma pulseira  e ordenei:
- É pra tua mãe.Pode ficar.Por favor...Por favor...É importante.
O moleque sumiu num tiro de canhão.


“Te odeio por todas as lágrimas que me inspirou
por todas as palavras que engoli
por todos os sonhos que sonhei
pelo tanto que te amei!
Um dia fui feliz...Hoje, morri!”


Estava em estado de putrefação e emagreci 05 quilos. A anemia me devorava por dentro; me entreguei numa cama, tremendo de amor e ódio.Queria vê-lo a qualquer preço mesmo sabendo que estava barbudo, gordo e monstruoso.Todos os dias lhe esperava na janela.Aos poucos minhas esperanças foram se desfazendo dando lugar ao desespero.
Procurei dentro de mim as palavras mais exóticas e os sentidos mais clássicos para lhe escrever uma carta.Queria que as letras se confundissem com o os ladrilhos sentimentais que se dilaceravam dentro de mim.Pedi que o carteiro lhe entregasse em nome do amor.
- Você faz isto por mim?
- Claro.Fiquei sabendo que ele está doente...meio deprimido...
-  Fala que estou lhe esperando.
Corri até o espelho e me arrumei toda germinando vida na alma.Era uma moça bonita de olhos expressivos, sobrancelhas grossas, lábios carnudos e totalmente virgem.Chamaram no portão.Não consegui reconhecer a voz.Deveria estar gripado ou...com vergonha.
- Entra.Pode entrar.- sorri.- Entraaaaa!
Nisso o carteiro sorriu sem graça, coçando a cabeça.
- Ele disse que é tarde demais e mandou devolver.Tá aqui,ó.Sinto muito.
Tarde por que??! A gente tinha todo o tempo do mundo! O infinito e o para sempre eram totalmente nossos...se ele quisesse, é claro, mas ele não quis.Me abandonou e abandonou-se também como que se não tivéssemos um nome a zelar!

 

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