top of page

                                           Eu sou mais eu!

Tentei deixar clara essa diferença, para não me castigar por algo que não merecia. Não existiam culpados, e a minha consciência era sabedora disso.
Cada um sabe de si e é responsável por seus atos. Acredito muito na “Lei da Ação e Reação”; portanto, a verdadeira justiça prevalece. Ela não é imediata nem tardia; chega no tempo certo. Prefiro não guardar sentimentos negativos, porque eles são traiçoeiros e cancerosos, fazendo mais mal para quem os alimenta do que para quem são direcionados. Trata-se de um exercício
da alma para viver com leveza, equilibrando a razão com a emoção!
Negar a própria história é se aniquilar. Não tem como viver como se fosse o fantasminha “Pluft”; mas eu estava com medo de assustar os meus pais com tantas verdades nuas e cruas, assim, de repente. Com eles, aplicaria o plano Z: prepararia o terreno com as sementes da informação, falando mais sobre a Aids, para que se familiarizassem com o assunto. Precisávamos reforçar a nossa velha amizade, e a Aids seria um bom motivo para que eu retirasse todo aquele sentimento rançoso que armazenava havia anos dentro
de mim. Durante muito tempo, preferi me isolar de todos; só que agora queria desatar os nós antigos para me sentir mais livre, leve e solta.
Peguei um caderno velho e anotei o que havia resolvido naquela reunião íntima comigo mesma. A princípio, achei melhor selecionar alguns nomes que saberiam, da minha própria boca e no momento certo, o que estava acontecendo. Não sairia na rua com um megafone, como se fosse o homem da pamonha, anunciando para a cidade inteira a notícia do século.
Comentaria assim que aparecesse a oportunidade, naturalmente, dentro do contexto da situação. Sem estresse! Comecei a escrever “A lista de Schindler caiçara”.  Mônica Borges, Valdete e família... Pode parar!
Todos os colegas de serviço e os mais chegados estavam lá... E agora? Tudo bem: mais parecia uma lista telefônica. Decidi preservar somente as crianças, os idosos e os portadores de deficiência física! Brincadeira! Só deixaria de fora a minha família, por achar que eles sofreriam muito naquele momento.
A notícia seria dada no estilo “conta-gotas”. Achei importante dar tempo ao tempo, para que eu pudesse me acostumar com a idéia. Apenas diria que eu estava passando por uma fase difícil, tipo, sei lá, por um derrame fulminante. Algo que viera para ficar.
— Como assim? — perguntariam. — Um derrame é um derrame!
— Um derrame diferente, com jeito de toxoplasmose.
— Mas não é a doença do cachorro?
— Sim, com certeza eu peguei do “Totó”.
— Que Totó!? E tem cura?
— Esse derrame especial, não. Talvez seja um derrame causado por
um vírus feito em laboratório. Algo como um “X-DELTA-Z”. Secretissímo!
– Quanto mais perguntariam, mais eu esclareceria do meu jeito. — Nem todo derrame é igual. Este é muito estranho! Acho que veio do macaco... da Tanzânia. Foi detectado pela Nasa, quando passou o cometa Halley. UFA! É terrível ter que inventar coisas, dar voltas sem volta.
Tia Dirce e Rose são minhas vizinhas da frente. Um dia, ouviram um “zum zum zum” na cidade e vieram me perguntar pessoalmente sobre o ocorrido. Minha tia chorou, emocionada, e disse no meu ouvido: “Eu te amo, filhinha!”. Ela sabe que a vida nem sempre é um paraíso. É uma mulher de fibra e muito corajosa. Uma grande mulher, como poucas neste mundo, e
não consegui enganá-la. Não gosto de mentir; no entanto, em relação às outras tias, falar a verdade seria maltratá-las demais. Sem falar que fariam um esforço enorme para
entender: “Hein? HIV? Na TV? ÊÊÊ!”
Elas são ótimas, mas muito conservadoras. Na minha família, mulher não fuma, não diz palavrão e ainda casa virgem. Não é obrigatório, mas faz parte do ritual. Minhas tias são perfeitamente lúcidas e, entre uma palavra cruzada e outra, discutem política, religião e futebol numa boa. São amigas e conselheiras, mas acho que Aids é um assunto pesado, que ainda impressiona. Com certeza, sofreriam muito! Só que, quando mentimos, sofremos mais ainda, e eu demorei um pouco para entender isso. Então, omitiria a verdade, por um determinado tempo. Quanto tempo? O necessário para me sentir mais segura.
Derrame é mais popular. Deixa as pessoas cheias de assunto, as quais passam a dar dicas de exercícios, bem como abraços comovidos. Ficam solidárias e amigas. Já a Aids é o “Ó”! Esse nome soa como uma trombeta enlouquecida, anunciando o apocalipse nas trevas do purgatório! Se tivesse um nome mais fashion, seria diferente. Sinta o peso:
— Estou com portilopitoma cruzis.
— Ah, interessante! — nem o olhou. — Tem que ser forte!
E agora:
— Estou com Aids.
— Ohhhhhhhhhhhhh! — caiu duro, e o papo acabou.
As pessoas sentem pavor, porque o desconhecido amedronta. Eu também, muitas vezes, cheguei a pensar que Aids era coisa de pistoleira! Saía por aí falando um monte de baboseiras, como se dominasse o assunto: “Transou, pegou”, “Magrelo tem, pálido e sem dente também” — discursava, cheia de autoridade.
Achava que já sabia o bastante, e tinha a plena certeza de que ela estava longe demais para ser real. Estava na África, na China, na “Piracéia”do Norte, na família do vizinho... Na minha, nunca! Eu era muito puritana para ter Aids. Tão puritana que nunca me informei sobre ela, como se fosse apenas um castigo para os outros, aqueles outros “cheios de pecado”, que
andavam no submundo do crime!
É, e agora estava ali com o meu exame carimbado, com as letras piscando em néon, para quem soubesse ler: Positivo! Que ódio! Daria tudo para que estivesse escrita outra coisa, como “estamos em dúvida”, “quem sabe, talvez...”, “nada a declarar, xereta!”. A cidade inteira já deveria saber, e todas as bocas dos bueiros cantavam, em ritmo de funk: “ELA TEM!
Ela tem, mas NÓS NÃO TEMOS!”. No próximo “Jornal Nacional”, William Bonner anunciaria, com lágrimas nos olhos: “Pois é, ela também foi contaminada pelo vírus HIV. Maiores detalhes no programa Linha Direta. Sinto muito e boa noite!”
Nisso, comecei a rir, pois percebi que esse detalhe não me abalava. É claro que não pretendia sair com uma carteirinha de DST/Aids, com direito a foto 3x4 colorida, no peito; porém, não queria andar dentro do encanamento da cidade, na calada da noite, apenas para não ser vista. Seria muito engraçado se precisasse colocar uma placa na minha casa, com os dizeres:
“FECHADO PARA REFORMA”, ou “MUDEI-ME PARA  Sapolândia.”
Nada disso! Teriam que me engolir! Que se explodissem de tanto preconceito!
Era uma questão de bom senso: seria humanamente impossível ignorar esse problema e viver fugindo dele. Havia duas alternativas: ou eu negaria até a morte, inventando uma doença mirabolante, ou encararia, superando os próprios limites.Veja só que situação: “Gente, sossega! O médico ainda não descobriu. Dizem que são fungos transmitidos pela garoupa macho
do rio Pró-mirim.” Depois, usaria um disfarce da “Dona Florinda” para fazer as consultas
médicas e um do “Homem-Cueca” para coletar os exames. E, se precisasse ir até a farmácia, apareceria de “Zé Bonitinho”. Esse estilo não combinava comigo! Sempre fui uma pessoa transparente e cheia de vida. Seria hilário dar uma de louca e recusar ajuda, apenas por preconceito. Aliás, o meu preconceito.
Aquele monstro ridículo que ainda me devorava por uma perna! Então, aceitei. Tinha HIV e faria tudo direitinho, para continuar bem e com qualidade de vida. Fiz um pacto comigo mesma: confiar na Ciência e nunca substituir o certo pelo duvidoso. A Aids ainda não tem cura; portanto, qualquer “palhaço” que dissesse o contrário, com base em boatos e “babaquices”,
estaria enganado ou queria me enganar. Espada de São Jorge, chá de carqueja ou banho de sal grosso não curam a Aids; então, nada de ervas mágicas ou curandeiros milagrosos. O meu médico e sua equipe de trabalho seriam as pessoas indicadas para cuidar de mim, pois haviam estudado anos para isso. Lutaria pela minha saúde até o fim, com dignidade, esperança e bom humor. Mas se de repente sentisse vontade de chorar, ou de ter um chilique poderoso, teria, sem culpa. Desde que não durasse uma eternidade, porque o tempo passa rápido e rasteiro!
Como me olharia diante do espelho? Postura ereta, olhar firme e cabeça erguida? Ou cara amarelada, cheia de desgosto e tristeza, arrastando-me pelo chão com o que havia sobrado de mim? Só para as pessoas comentarem:
— É uma sofredora! Olha só o jeito dela, parece que foi atropelada por um trator Oi, coitadinha, como vai você?
— Levando!
— E aí, pobrezinha, o que você anda fazendo de bom?
— Esperando a morte chegar!
Isso tudo não seria “um mico”; seria um “King Kong”! Então, coloquei um CD do Elvis no último volume, fiz um suco de groselha e estourei pipoca, para assistir à história da minha vida, que foi passando como um filme diante dos meus olhos. Era um filme dramático. Quem diria, hein!? Justo eu, que não tinha aproveitado “nadica” de nada: com 19 anos, era donzela e ainda
guardava o meu primeiro carrinho de rolimã na lavanderia de casa... Uma “besta quadrada”! Gostava mesmo de visitar asilos e organizar campanhas de Natal. Era a alegria da galera e, no final do ano, junto com minha amiga Cecília, distribuíamos brinquedos usados para a molecada. Contudo, a vida é uma caixinha de surpresas e, agora, estava morta diante daquele “teledrama macabro”! Só podia ser castigo! Com certeza, quando Cristo foi pregado
na cruz, eu havia dado uma bicuda na Sua Santa canela fina... Sempre gostei de novos desafios, mesmo daqueles de “cair o cabelo”, porque era uma motivação para ir além dos meus limites. Tentava me convencer de que seria capaz de superar, mas tremia como taquara. “É pior do
que filme de terror! Misericórdia! E agora?” — pensei.
Precisava de um colo bem fofo, feito por um colchão de penas de ganso. Queria um abraço apertado, um chocolate quente, um cobertor de flanela, uma touca de lã... A única pessoa que poderia me aquecer naquele instante era a minha mãe, mas eu havia preferido não lhe contar toda a verdade. Talvez se tivesse incluído o seu nome na minha lista maluca, não estaria
tão só...Tudo aquilo que fora decidido estava apenas no papel. O difícil mesmo
seria colocar em prática, porque no campo de batalha as fortalezas também
esmorecem, e as melhores estratégias voam pelos ares! Então, enrosquei
as pernas na minha boneca de pano e dormi no sofá da sala, completamente
trincada de pavor, sendo devorada por uma gangue de pernilongos
assassinos.
Quando clareou o dia, a minha cara estava uma “paçoca amassada”.Havia chorado o suficiente para me sentir melhor. Fui uma das primeiras visitas a chegar à Santa Casa, e levava uma florzinha vermelha nas mãos.Vermelho é a cor da vida e simboliza o amor! Aquele amor solidário que devemos ter pelo próximo, nos momentos mais difíceis. Na alegria e na tristeza.
Na saúde e na doença. Maria Joana , coordenadora do Programa de DST/Aids de
Ubatuba , já estava lá de plantão, na retaguarda. Suspirei aliviada. Depois, chegaram as irmãs do Serginho, Roselaine e Rosana, junto com o cunhado Ferraz .O seu único irmão Fabinho Rossi , o qual estava abalado., nos deu muita força , principalmente com os banhos, porque Serginho não conseguia se levantar sozinho.
Eu não tinha muita noção da gravidade do problema e procurava dar conforto a todos, dizendo que tudo iria melhorar. Da minha família não havia ninguém, porque ninguém sabia. É nessas horas que nós percebemos que tudo poderia ter sido diferente. Eu quis poupar tanto a minha mãe, que acabei carregando, sozinha, um dinossauro obeso nas costas. Se ela estivesse ali, com
certeza dividiria comigo aquele peso morto. Lembrei-me de tudo que já havia passado, e percebi que era capaz de renascer das cinzas... Lembrei-me das palavras de Fábio: “Um dia, você ainda será uma grande mulher, e sentirei muito orgulho disso”. Onde Fábio estivesse, estaria do meu lado, como um dia eu estive do seu. E, diante dessa certeza, fortaleci-me.
Para Serginho, não quis dizer nada. Em outra ocasião, esclareceríamos todas as dúvidas, por meio de uma longa conversa. Só consegui lhe dar um abraço, oferecendo tudo o que tinha de melhor: a minha solidariedade. Não se fortalecem defesas alimentando a revolta, a mágoa ou qualquer outro sentimento negativo. A saúde é um estado de espírito que flui de dentro para
fora. Sempre fui cristã, e a fé em minhas convicções não poderia ser “firula”.
Era preciso colocá-la em prática, e o momento exato era aquele. Todas as vezes em que me olhava, ele se emocionava muito e não conseguia falar, mesmo porque todo o seu lado direito estava paralisado. “Droga maldita!” – resmungava, com a boca toda torta.

 

bottom of page