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                      Essa tal de Bethy  BOOP  e  eu

Como tudo começou? Vamos lá. Agora o bicho vai pegar porque esta história ainda me deixa muito emocionada e preciso de um tempo para conseguir  me expressar melhor sem cair no choro... Eu nunca tive a pretensão de ser uma pessoa comum. Queria me transformar em alguém inatingível, inesquecível e acima de tudo imortal, principalmente na lembrança daqueles a quem amei e ofereço o melhor de mim, sempre.
Quando nasci não teve festa e nem gritos de euforia. Dizem que era miúda, feia, careca e sem graça. Talvez  fosse  por  esses detalhes cruéis  que não me receberam muito bem no “ambiente” , sentindo  medo daquilo que eu representava  no mundo: um presente indesejável.
Não sei se em algum instante aquela garota de mais ou menos dezoito anos  me quis de verdade.Só soube que no dia seguinte após o meu nascimento já não me amava  mais.Tinha outros objetivos e eu  não lhe valia o suficiente para que me desejasse ao seu lado.
Você pode ter um texto na ponta da língua para tentar me convencer que ela não estava preparada para ser mãe só que eu não exigia muito; um colo quentinho me bastava, o seu leite escorrendo pelo canto da minha boca, um toque de dedos no meu corpo e uma declaração de amor ao pé do ouvido faria toda a diferença. Se em algum momento eu tivesse a certeza de que ela tentou me amar me sentiria acolhida e tentaria compreender suas lamúrias. Só que a história contada é outra e tenho este “caroço de manga” entalado  na garganta, atrapalhando a digestão e reprimindo a minha ânsia de ser  completamente feliz.
Dizem que ela me deixava logo cedo no meio de um galinheiro imundo, como se eu fizesse parte daquela sujeira, causando indignação e piedade nas pessoas que passavam por perto. Eu ficava ali porque a “madame” precisava trabalhar na única boate da cidade e a proprietária do estabelecimento não permitia a entrada de crianças para não atrapalhar a freguesia.
-  “Coitadinha da Silmarinha”! – comentavam.
Que raiva. Que mico! Deveria ser o bebê monstro da Casa dos Horrores, aliás, do “galinheiro maldito”- parte II.
- Você estava toda perebenta! – contam em detalhes com lágrimas nos olhos. - Acho que tinha até piolho!
Inheca! Piolho aos sete meses de idade é forçar a amizade, né? Nunca tive certeza sobre o seu verdadeiro nome. Talvez fosse Bete.Sei lá.Dizem que ela me oferecia para as pessoas em troca de baboseiras e depois de algum tempo já não estava mais por perto, mudando-se para outra região.Pegou o caminho da roça com um saco de tralhas e nunca mais voltou. Eu guardo essa sensação de abandono no meu íntimo e ainda reflete dentro de mim aquele instante que me olhou por inteiro pela última vez. Até hoje sinto frio em pleno verão e uma saudade imensa que essa tal de Bete  nunca saberá.

Nisso minha tia Dirce entrou em cena com sua armadura do bem e me arrebatou dali levando-me  para um novo mundo.Tinha uma irmã mais velha que ainda não tinha filhos e fomos apresentadas de um jeito um pouco injusto, pois naquele momento eu representava a exclusão social totalmente personalizada com as vestes do flagelo humano. Ainda bem que existem milhares de mães que procuram um pacote de presente indesejável e assim conheci a melhor de todas...Mãe Maria, dona de um ventre imenso e aconchegante que soube me acolher como eu merecia, cuidando das minhas chagas, fazendo um cafuné nos meus sonhos e perfumando os  caminhos que  me conduziram ao seu coração.

 


 

 

 

 




 

 

Fui  levada para a sua casa e  renasci do anonimato  insignificante que me encontrava.Ganhei de presente roupas  com cheirinho gostoso, cama quentinha, beijinho na barriga ,cócegas  nos pés e sobrenome novo!
Passeava de mãos dadas com o meu pai Oscar pelas ruas da cidade usando modelitos costurados por ela, que combinavam perfeitamente  com o laços vermelho do rabinho de cavalo.Meus pais já tinham mais de quarenta anos e eu era o xodó da casa, sendo paparicada também pela minha tia Dirce, tio Freitas, Rose e Carlinhos, que me amavam de verdade e me ofertaram tudo de bom! Eles são a minha verdadeira família!
Eu parecia uma boneca com outras bonecas no colo, tentando ser, quem sabe, uma filha comum. Mas eu era a filha do pecado, talvez “fruto” de uma aventura qualquer e o povo falava demais.
Foi nesta época, mais ou menos aos seis anos de idade, que comecei a desconfiar que alguma coisa estava  esquisita, porque de repente  minhas amiguinhas foram proibidas pelos pais de brincar comigo.
 - Eu ouvi  eles falarem que sua mãe é “vagabundona”.
Vagabunda?! E o que seria isto? Eu não conhecia o verdadeiro sentido daquela palavra estranha, mas sabia que não era um elogio.
Então fiquei só e confusa no meio de cochichos e frases inacabadas.
A cidade inteira conhecia a minha história, menos eu, e um dia a molecada me colocou para fora da piscina do clube fazendo gestos obscenos e gritando em coro quem eu realmente era: a filha da boa mãe. Enquanto rapidamente tentava pegar minhas coisas, eles invadiram o vestiário e me empurraram contra a parede me acusando de rebolar como a minha mãe fazia! Cheguei em casa chorando e meu pai só balançou a cabeça, entristecido, e da noite para o dia  resolveu mudar dali para bem longe daquela maldade humana.Então fomos tentar a sorte na cidade grande, indo embora com uma mão na frente e a outra ...também!
“A casa caiu”, e num estalo de dedos arrumamos as nossas muambas dentro de um caixote de madeira e colocamos o pé na estrada, chorando lágrimas de cebola. A inesquecível e inoxidável tia Etelvina havia conseguido um emprego para o meu pai na gráfica Romitte, e moraríamos na sua casa até que a situação melhorasse.
Foi uma choradeira danada, porque do outro lado da estação de trem havia ficado, em prantos, minha querida tia Dirce, a Rose, o Carlinhos e uma cidade que se resumia apenas na igreja da Matriz e na avenida principal, sempre congestionada por cavalos e carro de boi.
Então desembarcamos em São Paulo com os olhos arregalados de susto. Para mim, tudo era novidade e, apesar de ter apenas 6 anos, lembro-me de que estava triste por ter deixado para trás a nossa vidinha, simples, mas tão nossa!
Para nós, a minha tia Dirce, o tio Freitas e os meus primos eram um xodó. Moramos por muito tempo na mesma casa e tínhamos os mesmos costumes do interior, inclusive aquele sotaque carregado que fazia muita gente rolar de rir. Fomos bem recebidos por todos e, mesmo com a nossa caipirice explícita, nos adaptamos rapidamente às mudanças. A família do meu pai era sofisticada e elegante. Na passarela, os tios desfilavam com sapatos de couro do lendário Mappim, camisas de algodão das lojas Ducal, correntes douradas com pingentes de Nossa Senhora de Fátima e topetes moldados com brilhantina... As tias decoravam a cabeça com penteados enormes salpicados de laquê; sempre vestidas impecavelmente com terninhos beges da luxuosa e pré-histórica Malharia Luísa e usavam sapatos com bico de garça nos pés, entupidos de joanete. Falavam difícil, sem sotaque, mas com todos os “erres” e “esses” possíveis. Gostavam de ler romance e de fazer palavras cruzadas com óculos enormes do tipo lunetão.
Durante dois anos, tia Etelvina nos acolheu em sua casa, em São Bernardo do Campo, e Fátima, sua única filha passou a ser minha prima e quase irmã. Com o tempo, conheci o restante da família e aprendi a amar cada um deles do meu jeito. Era um monte de gente “bacana”, que só veio acrescentar na minha vida.
De repente minha mãe me puxou pelo braço , fomos  até o quarto do fundo e ela trancou  a porta com duzentas chaves, transpirando  em bicas enquanto eu continuava muda feito um pé de inhame.E com uma cara desolada me confessou  friamente:
- Você sabe que a gente mudou para São Paulo porque aquele povo fofoqueiro falava coisas, né? Coisas ruins ...Tudo invenção de um bando de linguarudo. - pausa. Carinho no cabelo: - É que tenho que contar um segredo... Não adianta mais ficar escondendo de você. Um dia vai saber mesmo... Você é minha filha do coração.
Ãhhhhh?! Como assim? E coração podia ter filhos?! E eu que pensava ter saído de qualquer lugar, menos do coração. Nossa, que surpresinha!
- Mas eu e teu pai... a gente  te amo muitoooo!
- Tá bom.
- Não ficou triste? - perguntou.
- Não.- menti.
E saímos para o corredor de mãos dadas. Ela parecia aliviada e eu, cheia de dúvidas. Fiquei durante horas me remoendo na cama, fritando de um lado ao outro e tentando do meu jeito, compreender  o verdadeiro sentido aquela revelação suada. O que era ser "filha do coração"? Acho que mamãe quis dizer que eu era muito especial; a queridona dela. A dona do seu coração. E foi assim que me sentia até o próximo capítulo...
Demorou algum tempo para eu descobrir que ser "filha do coração" significava muito mais do que ser a mais amada. Significava também ser a coitadinha, a "sem teto", a excluída... Aquela pobre criaturinha esmiligüida que foi abandonada ao relento. Aliás, no aconchego de um galinheiro muito animado.
- E cheia de feridas pelo corpo todo. Você foi achada num galinheiro “purguento”...Ela te trocou por um saco de banana.
Caracas!Eu deveria ser a filha da macaca Chita. Ainda se fosse por um saco de maçã argentina ou de morango silvestre... Mas de banana?! Que  mulher mais pobre do mundo.Comecei a sentir raiva daquela história sem pé e sem cabeça, e principalmente daquela mãe esfomeada.
- Barriga de verme! - xingava com os meus botões.Me trocou por um saco de banana.Ou seria de ração? Ou de esterco?
Algumas pessoas alfinetavam:
- Sua mãe era uma louca. Tinha um monte de namorado. Ficava com todos os homens da cidade. Acho que você era filha do gerente do banco.
Enquanto eles riam, eu fingia rir também, mas por dentro a minha barriga dava um nó como se tivesse uma mariposa voadora dentro das próprias tripas. Então fazia de tudo para ser aceita por cada um deles, para que não percebessem que minha estirpe era diferente e me devolvessem num envelope lacrado via sedex. Na verdade era filha do vento! Do vento, do raio, do Tsunami, do El Nino, já que minha mãe era uma mulher muito dada. Que raiva, meu! Só que não podia verbalizar sentimentos negativos. E se voltassem contra mim irados achando que era demais naquela família? E se abrissem a porta num pontapé certeiro me mostrando o caminho da roça? Tinha que ser perfeita, maravilhosamente admirável, linda, leve e solta.Sem traumas ou revoltas.Tudo numa boa!
Parecia uma boneca de corda com frases feitas:
- Bom dia, titia. A senhora está linda!
- Jesus te ama, titio. Seja feliz! – declamava, sempre feliz.
Inheca, que puxa saco. Mesmo assim ficava no "vermelho", devendo paparicos para tudo e todos.
-A Silmarinha é uma boa menina. Nem parece que é adotada.-  alguns intrometidos rosnavam pelos cantos.- Ela já sabe?
A-do-ta-da.Eu odiava essa palavra.E pra piorar a situação  eu era adotada e pobre.Aliás, uma pobre idiota que dependia de uma caixa de roupas doadas para ficar mais bonitinha. Morava de favor com a minha tia Etelvina e sabia de cor que havíamos saído do interior de São Paulo para tentar a sorte na cidade grande. Meu pai era porteiro de uma fábrica, minha mãe dona de casa e eu, simplesmente eu, era a filhinha feia do galinheiro
Então quer dizer que viemos para São Paulo fugidos da seca, aliás da língua seca daquela gente fofoqueira que  tagarelava  sem piedade , já eu era uma criança de 06 anos e não sabia o motivo de tanto deboche? Então quer dizer que meu pai, aquele homem generoso que cuidava de mim como sua verdadeira filha, havia resolvido sair fora daquela cidadezinha lambisgóia porque as pessoas sabiam da minha história e comentavam nas esquinas que eu era uma filha da boa mãe? Comentavam e sorriam pra mim, e eu devolvia o gesto sem perceber que os filhos da boa mãe eram eles!
Aos poucos fui entendendo que era uma menina sem raízes; uma árvore seca e podre, prestes a se extinguir no deserto do abandono. Talvez a filha do boto.Prima da loira do banheiro.Tia da curupira , irmã do saci pererê e cunhada do palmito juçara .
Na minha santa cabeça de alho passavam mil pensamentos. Por mais que soubesse que era muito amada parecia que pisava em ovos.
Lá no fundinho do peito, entocado embaixo daquele ranço bolorento, tinha um sentimento bacana e , apesar de disfarçar o máximo, queria saber  detalhes sobre essa tal de Bete .E me pegava em devaneios tentando imaginar o seu rosto, a cor do seu cabelo, o jeito do seu corpo, o que pensou de mim e o que eu havia feito de errado para me deixar ali...E nesta parte um fel amargava a boca e todo a raiva do mundo escorria pelos meus olhos.
- Ela não merece nada de mim. Morreu e pronto!
Ninguém falava coisa com coisa e preferi enjaular no meu interior  saudades  monstruosas de uma mãe completamente esfomeada, que me abandonou  a troco de uma penca de banana podre.
Passei a odiá-la por noites mal dormidas.
- Gulosona do caramba!
Aliás, diziam as más línguas que ela havia morrido vítima de um aborto mal feito.Tudo bem.Que perambule eternamente pelo vale dos lombriguentos.
- Loira postiça! Por que me abandonou?
E se fosse morena?
- Morena fulera, por que me deixou num galinheiro sujo?
E se fosse afro-descendente? Nunca soube.Dizem que era bonita.Pior ainda.Bonita e pistoleira. Depois eu fechava os olhos e chorava em silêncio.

- Parece que sinto o seu cheiro...-  resmungava em soluços. Isso ninguém jamais soube.Não podia reclamar.Nunca mais toquei naquele assunto com a minha mãe.Só que eu tinha os meus pensamentos fúnebres e chorava quietinha no escuro do quarto.Usava rabinho de cavalo, bota ortopédica e casaco de lã doado pela família camarada do meu pai. Esses detalhes fizeram parte da minha infância, que num estralar de dedos foi dando lugar a uma nova fase da vida.Uma fase que começou quando meus pais resolveram bater as asas e alugar uma casa em outro bairro bem longe dali.

 

 

Eu, tia Dirce e mamãe segurando o meu livro autografado especialmente para ela.

Querida Bethy, acredito que você teve várias  oportunidades para me buscar, para me ver, para saber se eu estava bem ou não...

Quarenta anos se passaram e você perdeu o melhor de mim.

Não conseguirei chamá-la de mãe porque infelizmente você não estava  ao meu lado quando aprendi as primeiras palavra.Agora não tenho mais nada para falar sobre você, mas se um dia, por qualquer motivo, lembrar-se de mim...saiba...que...eu...estou aqui.             Acho que te amo!

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